Entre a Falta de Luz e a Falta de Vergonha
A Madeira, esta terra cansada, esbaforida de tanto se ouvir a si própria, escorregava pela encumeada da vaidade, enquanto Miguel Albuquerque, feito canastro de palavras sem sustança, espichava do beiço que se o apagão do continente tivesse rebentado cá, na nossa terra, seria “imediatamente detectável”. Disse-o com aquele ar de cagarola convencido, como quem sopra um balão furado e acha que é foguete, naquele falanço balofo de sempre, misturando gabança com ignorância, como quem mistura vinho avinagrado no bom e ainda se gaba do sabor.
Primeiro disparate: o tamanho da Madeira, coitada. Porque é “um ecossistema mais pequeno”, dizia ele, a modos de vendeiro a vender peixe estragado como se fosse fresco, seria mais fácil detectar uma falha. Mal sabe, ou pior ainda, sabendo, finge não saber, que pequeno, na Madeira, é sinónimo de fágil, como essas figueiras de escarpa que um ventinho logo bota ao chão. Um abicadouro¹ de sistema, onde uma falha numa turbina manda logo toda a gente a lamber lume, e nem com todos os rezos às alminhas de São Tiago se escapa. Detectar? Claro que sim, homem de Deus. Até a Tia Zulmira, encafuada no poio do Chão da Ribeira, dava fé da escuridão. Resolver? Ah, isso é que era o cabo dos trabalhos.
Depois, a desfaçatez de sempre, o manso desenxabido de quem acha que pode mandar uma esgaça e ficar a rir. “Apenas alguns serviços dependentes do Estado terão sido afectados”, atirou ele, com aquele ar de figurão, a cheirar a água de colónia, como as coisas do Estado fossem brincos de feira, ou coisa para entreter o povo em dia de folga. Como se a Madeira não estivesse toda ela feita de estado e de fome, de repartição pública e de fome, de pequena loja e de fome, de estrada a cair e de fome.
Mas o mais triste, o mais desdentado disto tudo, é a confusão entre detectar e resolver. Como se ver a bicheza fosse matá-la. Como se a vergalhada de saber que há uma fuga na levada adiantasse sem o home que tranca a adufa a tempo. Detectar não cura. Detectar é só o principio do chorrilho. E a Madeira, como toda a gente sabe, ou finge que não sabe para não ter de fazer nada, é um atapetar de problemas velhos, um cangalheiro de improvisos, um facho apagado por dentro e por fora.
Não é novidade, nem espanta ninguém que tenha mais de dois dedos de testa. A ilha vive num apagão, e não é de electricidade: é um apagão político, de ideias, de coragem, de vergonha na cara. Um apagão, tão grosso e tão sólido que já se pode caminhar em cima dele como se fosse chão firme. Um apagão a modo de praga antiga, como essas febres malinas² que nem a poncha da Serra d'Água cura.
E os discursos, os falanços, os espiches³, são só a poeira a tapar o que toda a gente vê de olhos fechados: que a Madeira é governada por fantasmas gordos de si mesmos, por bestuns⁴ empandeirados que vendem fogo-fátuo como se fosse luz do céu.
¹abismo ²estado grave de doença e com febre ³do inglês "speech" ⁴pessoa sobre si
Abril 2025
Nuno Morna
Ninguém percebe mais de apagões e de electricidade do que eu.
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