Há os debates e há os comentários aos debates

[e uma coisa não tem nada a ver com a outra]

Ouvir os comentários dos pseudo-analistas que se empoleiram nas cadeiras giratórias das televisões como galos tísicos de um galinheiro apagado é um fadário, um suplício monótono que se arrasta pelas noites como os programas antigos da Rádio Argel que o meu pai dizia ouvir com o botão de volume quase fechado, não fosse alguém perceber, não fosse a vizinha, a do cão com reumático, a do marido funcionário público, denunciar ao administrador do prédio que lá em casa se escutavam comunistas com sotaque soviético. É um fadário, dizia, e é um tédio viscoso, morno, que se cola ao ecrã a como a humidade se cola às paredes da casa velha e que nos penetra os ossos com aquela certeza desesperançada de que nada vai mudar, de que nada, nunca, mudará.

Muitas vezes, talvez demasiadas vezes, quem comenta gostava era de estar do outro lado, de ter o microfone apontado não como inquisidor, mas como candidato, com cartaz, com slogan, com beijinhos a bebés emprestados e mãos apertadas a reformados a cheirar a cânfora e solidão. O comentário é o consolo dos que não foram escolhidos, o palco improvisado de quem quer passar pela política como quem passa por um casamento falhado e agora conta, com amargura e vaidade, como tudo podia ter sido diferente e melhor, se o partido não fosse dominado por medíocres, se o líder não tivesse inveja, se os outros não fossem tão burros. Cada análise vem carregada de um ressentimento mudo, de uma nostalgia nunca admitida, de uma vontade de ser protagonista outra vez, ou pela primeira vez, porque há ali qualquer coisa de inacabado, de interrompido, de quem ensaiou durante décadas o discurso da noite eleitoral, mas nunca chegou a pronunciá-lo. Falam com aquela ferocidade disfarçada de racionalidade que só tem quem se sente injustiçado, quem acredita que o país perdeu algo ao não tê-lo eleito, quem transforma o estúdio num palanque clandestino onde ainda alimenta a ilusão de que um dia, talvez um dia, será ele o nome no boletim.

E os comentadeiros jornalistas, com os seus fatos e farpela gastos e as suas vozes de falsete cívico, incapazes de tirar as lunetas ideológicas com que nasceram e que já não distinguem do rosto, lunetas rascas, de feira, compradas com senhas de opinião e selos de correio, lunetas que não vêem, que só projectam, falam como quem reza um terço mal decorado, como quem diz o Pai Nosso sem saber a quem. Acreditam, talvez, num país que nunca viram, num país que inventaram entre os corredores da redacção e os corredores do supermercado onde compram iogurtes light com a esperança patética de um dia voltarem a ter cintura. Não escutam. Não querem escutar. Só querem confirmar o que já pensavam antes de abrir a boca.

Falam, estes palradores, com aquele tom de padre que perdeu a fé, mas continua a celebrar missa porque alguém tem de pagar as contas da luz da sacristia. Falam como se tivessem um mapa, mas o mapa é antigo e já nem a bússola funciona. Tudo neles é nublado, baço, cheio de ecos de uma infância mal resolvida e de uma juventude que não chegou a ser. As palavras que usam são fósseis, os gestos mecânicos, e, no fundo dos olhos, vê-se aquele medo profundo, aquele pânico surdo de quem sabe que não está a dizer nada, mas não consegue parar.

E há ainda os paineleiros de segunda apanha, os comentadores de reserva, os suplentes do regime, que estão tanto tempo nos estúdios que já confundem a maquilhagem com pele, o microfone com o coração e o aplauso do operador de câmara com a consagração. Estes, coitados, falam de Portugal como quem descreve um animal que viu num documentário da BBC, com entusiasmo técnico e distância segura. Não sabem o que é o país. Nunca souberam. Vivem numa Lisboa de cafés caros e indignações ocas e acreditam que o mundo começa no Marquês e acaba em Benfica. O país para eles é uma palavra. Uma palavra sem cheiro, sem cor, sem nódoas de vinho na camisa, sem gente.

Portugal, o verdadeiro, é um puzzle estilhaçado, um conjunto de bolhas tristes que flutuam no vazio, cada uma convencida de que é o centro, de que é a verdade. Ninguém ouve ninguém. Ninguém vê ninguém. Cada qual a falar para o espelho da própria ignorância, a confundir o quintal com o universo, a tomar o seu umbigo por planeta. O que se passa à volta é ruído, é sombra, é qualquer coisa que incomoda e se empurra com o pé para o canto. Vivemos assim. Vivemos como quem não vive.

E o futuro é negro. É negro porque já não temos vontade de acender a luz, porque já ninguém quer saber onde está o interruptor. O país é um palco sem actores, uma peça repetida até à exaustão por figurantes que esqueceram o enredo. E nós, sentados nas cadeiras da plateia, vamos ficando. Vamos ficando porque sair é cansativo. Porque protestar é inútil. Porque pensar dá trabalho. E porque, no fim, talvez ainda haja um último comentário, uma última frase, uma última promessa dita com voz grave por um homem com óculos sujos que ainda acredita, coitado, que está a mudar alguma coisa.

Abril 2025

Nuno Morna





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