Kit de sobrevivência para a política madeirense
Dei por mim a pensar, enquanto olho o mar encarquilhado de cinza ao fundo da varanda, que sobreviver na política madeirense, é uma coisa suja, triste, antiga como as nódoas que deixei sobre a camisa, uma coisa para homens de couraça fria, para quem aprendeu cedo que as virtudes são uma espécie de fé-de-ofício para enganar os tolos, e os que não são tolos acabam por se enganar a si próprios, porque querem, porque precisam, porque a ilusão é mais confortável do que o pânico. Quem ousa meter o pé nesse charco que fede a promessas podres precisa, antes de mais, de um kit, como quem vai à guerra, como quem se mete numa pescaria sabendo que vai regressar sem peixe e com o barco furado.
Um capacete anti-rataria, primeiro, apertado ao crânio como os capacetes dos mineiros. E não é para menos, porque na Madeira cava-se debaixo dos outros como se o respeito fosse uma doença vergonhosa, um hábito de fracos, cava-se sob a pele, cava-se sob os discursos de afecto, cava-se sob o sorriso de verniz, e se o capacete falhar, mesmo que seja de aço, mesmo que esteja benzido por todos os santos das capelinhas eleitorais, o chão engole-nos, e o engolir é manso e morno, e nem damos por isso até já ser tarde demais.
Botas de cabedal grosso, também, para atravessar a lama das reuniões, a lama dos projectos que não saem do papel, a lama dos abraços em que os braços se apertam à volta do pescoço como cordas, e cada passo mais fundo, mais pesado, e os dias sucedem-se como em marchas forçadas de soldados bêbados que não sabem onde vão nem para quê, mas vão, e vão, e vão, até caírem para o lado.
Um manual de dialéctica pós-moderna é indispensável, e se não existir, é inventá-lo, porque na Madeira, e fora dela, mas aqui com mais calor e mais doçura e mais disfarce, governa quem fala sem dizer, quem embala o povo em sons de embalar, quem promete soluções inclusivas e respeitos às matrizes identitárias e outras palavras que boiam na boca como flores de plástico num cemitério de aldeia.
Um frasco de soro da verdade selectiva seria útil, mais para ver os outros do que para nos ver a nós próprios, que a lucidez é insuportável em doses altas e a memória, quando se torna viva, magoa, corta como o vidro partido das garrafas nas festas de fim de ano no Lobo Marinho, e como o soro não existe, resta a arte antiga de ouvir com atenção, deixar que falem, que se embriaguem no som da própria voz, que revelem, sem querer, o que a prudência lhes mandaria calar.
Óculos de visão de futuro, também, se ainda houver futuro em lugar nenhum, se ainda for possível ver para lá do presente sujo como um lençol que não se lavou durante semanas. Quem vê dois anos adiante é rei, quem vê décadas é louco, e na política madeirense a loucura é uma maldição e uma bênção, porque no final, dê por onde der, são os loucos que ficam, quando os outros desaparecem.
Repelente de demagogia, a cada manhã, borrifado nos pulsos, atrás das orelhas, como um perfume barato comprado em feira beneficente, porque a demagogia alastra pela ilha como erva daninha, como agrião nas ribeiras, como urtigas nas bordas dos caminhos e carqueja na serra, e promete paraísos que ninguém quer construir, apenas sonhar, de olhos fechados e barriga cheia.
Um mapa de acessos ocultos, com as portas secretas, os corredores fechados, os elevadores invisíveis onde se decidem as nomeações, os contratos, os silêncios, e quem anda pelos caminhos principais, esses cheios de luz e de aplausos, não passa de figurante, de actor de terceira num teatro de província onde os papéis estão atribuídos desde a primeira hora.
Estojo de planos de contingência, A, B, C, D até ao Z, e o Z é sempre o mesmo, é sempre desistir, é sempre voltar ao princípio, abrir uma tasca em São Vicente, vender fruta no mercado da Ribeira Brava, remar um kayak para longe e esquecer o que não devia ter sido lembrado, deslembrar que alguma vez se quis mudar o mundo, esquecer que alguma vez se acreditou em alguma coisa.
Estojo de primeiros socorros éticos, como quem leva um cantil de água para o deserto, sabendo que não chega, sabendo que acabará por secar, mas ainda assim levando-o, porque morrer de sede sabendo que não se tentou é pior do que morrer apenas.
E, no fim, o que talvez seja mais importante de tudo: senso de humor, mas não o senso de humor fácil das anedotas de restaurante, o senso de humor árido, cruel, doloroso como uma ferida, o senso de humor de quem olha para a desgraça e sorri, porque não há mais nada a fazer, porque rir é a última dignidade, a última recusa.
Um velho pescador de Câmara de Lobos, analfabeto e sábio, disse-me um dia, entre duas tragadas no cigarro torto que lhe pendia do canto da boca:
- Quem quer peixe, tem de se molhar. Mas se não souber nadar, nem olhe para o mar, rapaz.
E na política madeirense, como na vida, o que nos afoga não é a água. É o sonho.
Abril 2025
Nuno Morna
Muito bom!
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