Marine Le Pen: da Ladra Nacional à Mártir Fabricada
A senhora Le Pen - sim, essa Le Pen, a Marine, herdeira não só de um nome mas de uma vocação - foi agora, com justiça quase bíblica, condenada por desvio de fundos públicos. Digo “quase” porque a justiça raramente tem algo de sagrado, e esta, não sendo excepção, limitou-se ao que podia: quatro anos, dois dos quais com pulseira electrónica, uma multa de seis dígitos e, cereja no topo da decadência, a inabilitação para cargos públicos durante cinco anos. O que, diga-se, é o equivalente político de uma morte civil com prazo de validade.
A senhora Le Pen, que passou os últimos vinte anos a martelar contra Bruxelas, contra a corrupção, contra os “bandidos” do sistema, não viu qualquer problema - é extraordinário - em usar dinheiro precisamente desse sistema para pagar os seus acólitos partidários. Dinheiro europeu, entenda-se, para actividades nacionais. Um pequeno desvio, dirão os seus devotos. Uma distracção, talvez. A verdade é mais prosaica: Le Pen roubou. Com frieza, método e senso de oportunidade. Não há como rodear isto. Roubou como tantos outros que ela própria dizia querer ver enforcados na praça pública.
Ora, este tipo de pantomina seria apenas mais uma nota de rodapé na longa história da degenerescência moral dos partidos, não fosse a reacção histérica dos seus seguidores — os mesmos que, com uma fúria quase evangélica, passaram anos a vociferar contra Lula da Silva. E, atenção, Lula devia ter sido condenado. Foi, e bem. A teia de corrupção montada sob o seu comando é uma mancha que nem a mais brilhante estratégia de marketing político conseguirá apagar. Mas aqui reside o ponto fulcral: se se condena Lula, como se deve, também se tem de condenar Le Pen. Com o mesmo vigor, com a mesma severidade, com a mesma certeza moral. Caso contrário, entramos no reino putrefacto do duplo critério, onde os nossos são sempre inocentes, e os outros são sempre culpados.
A condenação por desvio de fundos públicos provocou o habitual histerismo na direita populista internacional. Orbán proclamou “Je suis Marine”, Salvini falou em conspiração judicial, Elon Musk viu uma cabala da esquerda radical e o Kremlin, com o seu habitual descaramento, denunciou “violações democráticas”. Tudo previsível. A velha táctica: transformar corrupção em martírio e fraude em perseguição política. A extrema-direita, como sempre, a chorar pelo sistema enquanto dele se serve.
Em Portugal, claro, temos a versão doméstica desta tragicomédia. Chama-se Chega, mas podia chamar-se qualquer outra coisa, desde que mantivesse o tom operático, a vitimização compulsiva e a moralidade de pacote. Figurinhas do partido como Regala e a inenarrável Rita Matias, quais cruzados do povo, quais inquisidores de feira, vieram, como não podia deixar de ser, em defesa da sua musa francesa. Quem se diz contra a corrupção, que acusa todos os adversários de serem “o sistema”, acha agora que Le Pen é uma vítima. Vítima de quê, exactamente? Da Justiça que funciona? Dos factos? Da aritmética?
Não sejamos ingénuos: o populismo não quer justiça, quer poder. E não quer combater o sistema, quer substituí-lo por um mais conveniente, onde os amigos ficam impunes e os inimigos são julgados na praça pública antes de abrirem a boca. O Chega e os seus acólitos, tal como o Rassemblement National de Le Pen, não têm um problema com a corrupção, têm um problema com quem não é deles. Se um dos seus rouba, é perseguição política; se é um adversário, é o apocalipse moral.
E aqui reside, se quiserem, a tragédia do tempo em que vivemos: uma geração de políticos que não acredita em mais nada senão na sua sobrevivência. A senhora Le Pen, condenada como deve ser, continuará a ser apresentada como mártir. O dr. Ventura continuará a defender o indefensável. E os seus seguidores, movidos não pela razão mas pelo ressentimento, continuarão a aplaudir.
Mas que fique dito, para memória futura: quem rouba ao Estado, seja Lula, seja Le Pen, é um criminoso. E quem defende ladrões com base em afinidades ideológicas, é cúmplice. Isto não tem nada de político. É moral. É civilizacional. E, já agora, é elementar.
Março 2025
Nuno Morna
P.S.: Permita-se-me, no entanto, uma dúvida, e é uma dúvida séria, quase desconfortável: não estará a Justiça, ao inibir Marine Le Pen de concorrer a eleições, a oferecer-lhe aquilo que ela e os seus mais desejam? Um martírio político à medida, pronto a ser explorado com lágrimas falsas, bandeiras às costas e a velha retórica da vítima do sistema? Transformar uma criminosa provada numa mártir eleitoral pode, no ambiente histérico da política contemporânea, ter o efeito perverso de fortalecer precisamente aquilo que se queria deslegitimar. E se assim for, a tragédia deixa de ser apenas moral e torna-se histórica.
Comentários
Enviar um comentário