O Perigo da Natureza Plebiscitária de Algumas Eleições
(ou a ilusão democrática como biombo da tirania emocional)
Li, num fim de tarde da semana passada, num post de um bom amigo, desses que envelhecem connosco como certas dores que deixámos de saber nomear, onde ele afirmava, com a convicção de quem já não espera que o escutem, que as últimas eleições na Madeira haviam sido, mais do que eleição, um plebiscito. E eram-no, de facto. Um plebiscito no sentido exacto da palavra, aquele que cheira a carne votante, a multidões que já não sabem por que votam, apenas que devem, que têm de, que se não votarem nele o mundo acaba, ou a freguesia, ou o lugar de estacionamento do filho na junta.
A democracia, dizia-se antes, era esse rumor de vozes desencontradas que se toleravam porque ainda havia tempo para tolerar. Agora não. Agora é outra coisa. Uma encenação sem contraditório, uma peça mal escrita em que os actores entram em palco já com a salva de palmas preparada no fundo da urna. Uma democracia com adereços de democracia, como um jantar de gala num lar de idosos onde se finge que os mesmos quatro pratos de sempre são alta cozinha. O voto, nesse cenário, deixou de ser escolha: é penitência, é fidelidade, é o preço do medo que se paga com um x na cruz.
E ninguém discute coisa nenhuma. Nem o programa, nem o que se fez, nem o que se há-de fazer. O líder não é arguido, é retrato. Um retrato que se pendura na parede do corredor e se cumprimenta em silêncio, com a reverência de quem teme que o retrato fale de volta. Ele não governa: paira. Está acima do pó das ruas, acima dos autocarros, das rendas, dos sapatos rotos. O povo não lhe pede contas: acende-lhe velas.
Na Madeira, como em tantas ilhas dentro do continente, há décadas que o poder se aprende de ouvido, como uma ladainha antiga, passada de mãe para filha, de padrinho para afilhado, de cunhado para emprego. E a oposição (ai, a oposição), a oposição é uma coisa que aparece quando há eleições como o padre que só visita os doentes na Páscoa: por obrigação, com o sorriso pronto e a pressa de ir embora. Os jornais, quando ainda os há, repetem o que lhes dão, como papagaios tristes de redacções vazias. E o povo, esse povo que dizem soberano, esse povo cansado, já nem sequer espera. Resigna-se. Vai, vota, come o bolo e volta para casa.
O plebiscito não é o acto de decidir: é o gesto automático de confirmar. A pergunta é sempre a mesma, com variantes de pontuação: ainda me amas? Ainda acreditas em mim? Ainda queres que continue a proteger-te do mundo lá fora, esse mundo tão cheio de perigos, de comunistas, de cubanos, de projectos europeus?
E se por um acaso raro, uma falha no sistema, uma hesitação no guião, alguém ousa dizer "não", não se lhe responde com argumentos. Reage-se com gritos, com excomunhão, com insultos no Facebook. O contraditório deixou de ser parte do regime: é agora uma ameaça. Não se debate, abate-se.
Tudo se passa como se o chefe, o tal que paira, não fosse já uma pessoa, mas um clima. Uma atmosfera que se respira sem dar por isso. Um hálito permanente sobre a nuca. E quando alguém tenta abrir a janela para respirar, há logo quem grite que vem aí uma tempestade, que não se mexa, que é perigoso mudar. Porque mudar, neste tipo de regimes de afecto, é uma forma de traição.
E o mais triste, o mais obscenamente triste, é que tudo se faz com os ritos de uma democracia. As urnas, os boletins, os debates vazios, os cartazes, os slogans, os pequenos brindes de plástico com o rosto do salvador. A mesma coreografia de sempre. Mas já não há dança, só os passos. Já não há música, só o compasso. E ninguém ousa dizer que está tudo morto, que estamos todos mortos, porque habituámo-nos à respiração assistida.
A História está cheia destes enganos. Destes momentos em que se confundiu o delírio da maioria com a vontade do todo. Em que se votou não por esperança, mas por exaustão. E depois veio a factura. Sempre vem. Depois da aclamação, o vazio. Depois da adoração, o medo de se ter adorado em vão.
Por isso desconfio das eleições que cheiram a festa. Das campanhas onde ninguém chora. Dos candidatos que não gaguejam. Das vitórias sem adversários. A democracia, quando é verdadeira, custa. Parte-nos ao meio. Obriga-nos a engolir derrotas, a ouvir disparates, a aceitar que o outro tem direito à sua estupidez. Mas é isso ou a servidão.
E quem prefere o conforto da unanimidade, que ao menos não minta a si próprio: não está a escolher a estabilidade, está a escolher o sono.
A democracia não é um sonho. É uma insónia. E não há comprimido que nos livre disso.
Março 2025
Nuno Morna

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