O Silêncio da Liberdade

Sou, sim, ideologicamente consistente, ou digo que sou, que já é um tipo de consistência, como os bêbedos que juram estar sóbrios com a mão no coração e os olhos a flutuar, porque no fundo sabem que se não disserem isso a si próprios caem, e eu também, se não acreditar que os princípios valem alguma coisa, que não são apenas o verniz com que se disfarça a sobrevivência, caio, e não é uma queda literária, é uma queda concreta, de cara no chão, nos joelhos, nas mãos que já não seguram nada, nem a ideia que se tem de si próprio, e tudo começa aí, nesse fingimento que se torna hábito e depois convicção, e pronto, ficamos liberais como quem se declara doente crónico: sabe-se que se tem aquilo, aprende-se a viver com aquilo, e um dia começa-se a defender aquilo como se fosse um dom, um destino, uma escolha feita por amor à liberdade e não por cansaço do contrário.


Liberal, sim, claro, sempre fui, talvez por medo do que vem com os outros nomes, com as palavras em série, com os planos a cinco anos e os discursos cheios de futuro que nunca chega, sempre fui liberal porque a ideia de mandar nos outros me repugna tanto como a ideia de ser mandado, porque nunca acreditei que alguém saiba o suficiente sobre a vida de outrem para dizer como ela deve ser vivida, porque cresci, se é que cresci, a ver o Estado meter-se em tudo, a arrastar-se por cima das pessoas com a lentidão e a arrogância de um elefante velho e gordo, a confundir ordem com obediência, igualdade com nivelamento, justiça com papelada, e sempre me pareceu que a liberdade, mesmo imperfeita, mesmo caótica, era preferível ao controlo, à vigilância, ao paternalismo viscoso de quem trata os cidadãos como doentes terminais ou crianças de escola primária.


Mas esse liberalismo não é de plástico, não é importado de Chicago nem embalado em inglês técnico, não é feito de gráficos com curvas ideais nem de frases com números mágicos que ninguém entende mas toda a gente repete. O meu liberalismo é sujo, real, de mãos metidas na lama das consequências, de quem sabe que o mercado não resolve tudo, que o mérito não chega, que a competição não é virtude quando o ponto de partida é uma farsa. E é aqui que entra a tal consistência com hesitação, a consciência de que por vezes os princípios batem de frente com o que se vê nos olhos dos outros, e que, nesses momentos, é preciso ter a decência de parar, de pensar, de talvez recuar um passo.


A liberdade que defendo não é a dos slogans, nem a dos folhetos com promessas impressas em papel couché. É uma liberdade desconfiada, cansada, feita de escolhas difíceis e perdas inevitáveis. É a liberdade de dizer sim ao risco e não à crueldade, de proteger a autonomia sem abandonar quem tropeça. E aqui, talvez, entre esse equilíbrio impossível de encontrar entre o princípio e o gesto, entre a regra e a excepção, se esconda o tal humanismo que me obriga a corrigir, a ajustar, a aceitar que há momentos em que salvar alguém é mais importante do que salvar uma doutrina.


Não se trata de desistir da liberdade, pelo contrário, trata-se de a proteger do cinismo, de a preservar da indiferença, de a manter viva numa sociedade que a confunde com egoísmo ou a troca por segurança. E, sim, continuo a acreditar no indivíduo, na sua capacidade de criar, de escolher, de falhar, mas não fecho os olhos ao facto de que muitos não chegam sequer a ter essa hipótese, que nascem presos a condições que nenhum contrato ou mérito pode desfazer.


O liberalismo que me interessa, que ainda me impele a levantar-me da cadeira e discutir, não é um sistema, é uma vigilância. É a recusa de deixar que o poder se instale sem limites, que o Estado se infiltre onde não deve, que a moral se transforme em norma. Mas também é a recusa de aceitar que tudo se reduz à soma de vontades privadas, como se a vida fosse um mercado e a justiça uma consequência espontânea da concorrência. Entre uma ditadura de virtudes e uma selva de interesses, há um espaço, pequeno, estreito, difícil, onde se pode viver com alguma dignidade, e é aí que procuro estar.


E se isso me faz parecer hesitante, contraditório, que seja. Prefiro mil vezes a contradição de quem pensa à pureza de quem impõe. Porque no fim, quando a política se desfaz e a ideologia se apaga, sobra-nos apenas a memória do que fomos para os outros - não o que defendemos, mas o que permitimos, o que dissemos, o que calámos quando sabíamos que era preciso falar. E se isso me obriga a ser incoerente de vez em quando, que seja, pois prefiro trair os livros a trair a consciência.


Março 2025

Nuno Morna 




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