O silêncio que poderia ser Papa

[in Rede Social, 28 de Abril 2025, DN Madeira]


Há uma leveza qualquer nele, como se andasse sempre um pouco acima do chão, não por ser santo, mas por ser, talvez, um desses homens que aprenderam a não fazer barulho ao entrar nas almas dos outros, como quem tira os sapatos à porta antes de pedir licença para ficar. D. José Tolentino, escrevo-o assim com o D. e tudo porque é cardeal, mas também podia ser poeta de mesa de café, como foi Pessoa, daqueles que se sentam com um caderno ao colo à espera que Deus passe disfarçado de lenço na cabeça ou de criança a chupar um pau de gelado.

E não é coisa de bairrismo, não senhor, não é por ter nascido na Madeira ou por dizer-nos qualquer coisa de dentro da ilha como quem sussurra a um búzio encostado ao ouvido. Não é isso. É porque há nele uma inteligência que não morde, uma erudição sem prepotência, uma cultura feita de silêncio mais do que de livros, como se tivesse lido tudo, mas guardado apenas aquilo que podia dizer-se com delicadeza. E essa maneira de escrever, essa maneira de escrever como quem reza e se interroga ao mesmo tempo, como quem sabe que a fé, quando é séria, nunca é um grito, é um murmúrio, um quase medo, uma vontade de acreditar que não se atreve a bater no peito com força.

Não há muita gente assim, quase nenhuma. Gente que, mesmo vestida de púrpura, parece andar de sandálias. Gente que fala da alma como quem tem uma na mão e nos pergunta se queremos ver de perto, mas sem obrigar. Gente que tem sede, muita sede, e por isso entende a dos outros. E quando leio os livros dele, os versos, os ensaios, os fragmentos de retiro e de esperança, parece-me que estou a ouvir um padre velho, dos de antigamente, daqueles que sabiam mais de pessoas do que de cânones, daqueles que sabiam que o pecado maior é o desprezo, e que a salvação começa, muitas vezes, num olhar sem juízo.

Ele não escreve para convencer. Escreve para abrir uma fresta. Para lembrar que há luz, mesmo quando não a vemos, mesmo quando já nos esquecemos de que existia. É uma espécie de arquitecto do invisível, um construtor de janelas numa casa onde as janelas estavam todas fechadas com tábuas pregadas há anos, décadas, séculos.

E se o Papa Francisco o chamou para Roma, não foi por acaso. Não se chama um homem assim por capricho. Chama-se porque se precisa de quem saiba dizer Deus de olhos molhados, sem marketing, sem foguetório, sem essa alegria falsa que se vende nas missas como se fossem sessões de auto-ajuda. Chama-se um homem assim porque o mundo está farto de padres que berram, e começa a desejar aqueles que ouvem. Que ouvem mesmo.

Não é por ser nosso. É por ser raro. Raro como um livro que não se empresta. Como um amigo que aparece quando não se pediu. Como uma carta escrita à mão no meio de e-mails e notificações. D. José Tolentino de Mendonça, o nome completo e inteiro como se diz o de alguém de quem se gosta. Porque sim. Porque ainda há quem fale do sagrado como quem se lembra da mãe. Com ternura, com verdade, com silêncio. E isso, hoje, é mais que teologia. É milagre.

Li alguns dos seus livros. Não todos, mas bastantes para saber que há qualquer coisa de profundamente humano, e por isso divino, naquela escrita. Li Elogio da Sede, Uma Beleza que nos Pertence, A Mística do Instante, são títulos com muito dentro. Li assiduamente quase todas as crónicas no Expresso, naquelas páginas em que o país inteiro se ia apagando aos poucos e só sobrava ele, uma voz que parecia escrita à mão, devagarinho, como se tivesse sido copiada num caderno de capa preta por um monge distraído com as andorinhas.

E o curioso é que mesmo quando não dizia nada de extraordinário, não havia ali o estalido da frase feita para impressionar, a beleza estava toda na maneira como o pensamento se curvava, como quem leva um copo de vinho à boca em câmara lenta, não por afetação, mas porque sabe que a vida está no intervalo entre o gesto e o gole. Havia textos em que falava do Natal, da solidão, da infância, da morte, do cheiro do mar, do tecto das igrejas e das palavras que já não usamos. E cada crónica parecia a continuação da anterior, como se todas fizessem parte de uma única oração longa, interrompida apenas pelas semanas do calendário.

Não escrevia como um teólogo, embora o fosse. Não escrevia como um padre, embora o fosse. Escrevia como um homem que pensava. E que não tinha vergonha de sentir. De chorar com a beleza de um gesto simples, de se comover com a fé dos que não sabem rezar e rezam melhor por isso.

E não é idolatria dizer isto. É lucidez. Porque um país que tem um escritor assim e o lê só pela metade, ou só o lê quando o Papa o promove ou quando é "papabile" é um país que ainda não percebeu a sorte que tem. Eu, pelo menos, tive essa sorte. De o ler. De o ouvir. De me calar por dentro quando ele falava.

Não tenho, nem por um segundo, qualquer dúvida de que José Tolentino de Mendonça seria um grande papa. Um papa que seguiria os passos de Francisco. Um papa que não precisaria de levantar a voz para ser ouvido no mundo inteiro. Porque o que ele diz, diz-se com a vida. E o que ele é, não precisa de púrpura nem de tiaras: basta entrar numa igreja vazia e imaginar-lhe os passos no chão, devagar, a abençoar o silêncio.

Maio 2025

Nuno Morna



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