Os madeirenses inda não estão escarmentados.
[in REDE SOCIAL, DN Madeira de 14 de abril de 2024
(e eu digo-o com a boca murcha de quem mastiga silêncio há anos, com o bico entalado na sopa morna da resignação)
Em bom madeirense, vos escrevo para dizer que os madeirenses inda não estão escarmentados, não senhor, e vê-se isso na maneira como continuam a abarbatar promessas como quem colhe vaginha debaixo de chuva, sabendo que estão verdes, sabendo que vão dar agastura ao estômago e mesmo assim comendo, comendo, porque têm fome, não de pão, mas de esperança, uma esperança azamboada, magra, com ares de chimbança, feita de ditos de comadres e promessas de alpendres.
Vão às urnas como quem vai à festa do Espírito Santo: não por fé, mas por costume. E lá entregam o voto, como se fosse uma broa velha, à espera que venha um brozilhão qualquer, um convite, um aperto de mão do chefe de freguesia, um posto de trabalho para o bizalho que acabou o curso e anda com o bandulho a arder de desespero.
Os madeirenses inda não estão escarmentados porque habituaram-se ao alambriado das palavras redondas, ao açodado da política do favor, à maré de discursos que são como a pota do mar: banzeiro, espuma e nada de peixe.
Diz-se, por cá, que fulano é esperto, é algorreiro, porque sabe a quem ligar, a que horas aparecer, com que tom falar. E isso basta. Isso é currículo. Mais vale saber pedir do que saber fazer. E os que não se metem nisso são logo tidos por alonsos, por gamberneiros do juízo, por gente que não presta porque não se vende.
Os madeirenses inda não estão escarmentados porque aprenderam a viver entre o bambote e o bordado, entre a festa e o funeral, entre a chulice e a choradeira, com a cabeça enterrada num bardaço de promessas que nunca se cumprem, mas que consolam, como o cheiro do brindeiro no Natal.
E quando alguém levanta a voz, dizem que é bestum, que quer dar bigode, que é cubano ou, pior ainda, funchalense da cidade que pensa que é capital de coisa alguma. E cala-se o tal, acagaçado, com medo de que o chamem de burzelo, de espertalhão, de traidor à terra.
Mas a verdade, ó minha gente, é que esta ilha está encafuada. Encarcerada em si mesma. O que devia ser autonomia virou capoeiro. O que devia ser liberdade virou ladainha. E os que tentam mudar o rumo acabam por se embruchar em desilusão, com a alma abestemada de tanto tentar.
Os madeirenses inda não estão escarmentados porque confundem o açodado com o justo, o apego com o amor, a tradição com a submissão. Mas há-de vir o dia, e esse dia não será anunciado com foguetes nem charambas. Será um dia cinzento, de tempo abatumado, em que alguém, talvez um desgraçado no fundo do mato, diga: basta.
E nesse dia, sim, talvez a Madeira desentupa. Talvez se arrume o barrisco da política, se varra o bicho da dependência, se enterre o voto por favor no mesmo buraco onde se enterram os animais mortos, bem fundo, com cal e vergonha.
Até lá, meus amigos, os madeirenses inda não estão escarmentados. E, se calhar, nem querem estar. Porque o escarmento dói. Dói mais que a batatada que se leva na praça.
E há por aqui muita gente que prefere continuar amassacada, mas calada. Porque sempre se disse que quem se cala, mama.
E isso, por estes lados, é profissão.
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