Serviço Regional de Saúde: os Corredores da Vergonha.
As fotografias são de 3ª. feira. 3ª. feira. E não adianta fingir que o tempo, por se afastar três dias, transforma a vergonha em normalidade, como se a distância de quarenta e oito horas apagasse a tragédia, como se o empurrão da memória arrumasse as pessoas como os armários onde metemos os lençóis de hospital que já não servem. Três dezenas de doentes, trinta corpos em macas, trinta ausências de quarto, de cama, de dignidade, de tudo. Espalhados pelos corredores do Nélio Mendonça como pacotes devolvidos à procedência por uma transportadora cansada. Uns gemem baixinho, outros limitam-se a estar, a desfalecer deitados na vertical, com os olhos a pedir qualquer coisa que não sabem já nomear, talvez só silêncio, talvez só fim.
E o pessoal a aguentar. A aguentar como se a urgência fosse uma guerra e eles soldados de infantaria lançados para um mato que não conhecem, sem mapa, sem ordens, com a farda molhada de suor e desespero. A fazer das tripas coração. Literalmente. As tripas, o coração, os rins, os turnos seguidos, os olhos vermelhos, os pés que já não sentem o chão, o riso que fingem de vez em quando para não chorar. A tratar com proficiência, diz-se assim, com proficiência e atenção, como se isso chegasse. Como se bastasse pôr a mão no ombro e medir a tensão arterial para o mundo voltar a ter sentido.
E a saúde, a nossa saúde, continua doente. Como um velho que já não reage aos antibióticos, que já não ouve nem responde, e que a família deixa no sofá com a televisão ligada no canal da missa porque é domingo e domingo é sempre o mesmo. Doente de meios. Doente de pessoal. De espaço. De condições. De tudo. E o privado ali ao lado, com camas, com bisturis esterilizados, com médicos a fazer palavras cruzadas à espera que lhes liguem, e ninguém liga. Ou ligam pouco. Ou ligam tarde. Porque há esta mania absurda de preferir que as pessoas morram na fila do público do que se curem rápido no privado. Como se a morte tivesse ideologia.
As pessoas não podem esperar. O problema não é novo, o problema nunca foi novo, o problema é que ninguém o quer resolver. Porque resolver é tomar decisões e as decisões implicam coragem e coragem é coisa que não se compra com dinheiro do Orçamento. E urge, sim, urge, como urgem os corpos no chão, como urgem os gritos abafados, como urge o desespero que se instala quando a enfermeira diz que não sabe quando vai ser a sua vez. Usar tudo. Tudo. O público, o privado, o social, a caridade, a boa vontade, os escuteiros, se for preciso. Porque não pode ser de outra maneira. Porque já ninguém aguenta este teatro.
E em Santa Rita o hospital novo cresce, uma espécie de catedral moderna para uma fé que já não existe. Substituiu-se a fé por promessas e a esperança por comunicados. O betão sobe, as gruas mexem, as fotografias multiplicam-se e os contribuintes, os de sempre, os que pagam a missa e o incenso, continuam sem saber que raio de missa é esta. Qual o modelo de gestão. Se é público, se é misto, se é de ninguém. Qual o processo de transição. Porque não se fecha um hospital com um cadeado e se abre outro com uma fita de inauguração cortada por um senhor de gravata. Isto tem gente dentro. Tem doentes. Tem médicos. Tem vidas.
E o Nélio Mendonça? Que destino lhe dão? Fecha? Vira lar? Vira arquivo morto? Vira um jeitinho para os de sempre construírem mais um hotel ou um empreendimento no seu lugar? Fica ali como uma cicatriz a lembrar que um dia se acreditou na decência e ela não apareceu. Ninguém sabe. Ninguém diz. E a imprensa cala. E o Governo finge. E o povo vai esquecendo, aos poucos, como se esquecer fosse uma forma de sobrevivência.
A verdade é que isto já colapsou. Só que ninguém teve ainda a decência de anunciar o óbito. Continuamos neste velório interminável com discursos de circunstância e flores falsas na sala de espera. E enquanto isso as pessoas morrem nas urgências. Morrem nos corredores. Morrem antes de serem vistas. Morrem como gado velho. E ninguém responde. Ninguém paga. Ninguém se demite. Ninguém. Porque isto, isto é a nossa saúde. A nossa. Doente, esquecida e maltratada. E a verdade é que, no fim, nem sequer há direito ao atestado de óbito. Só à conta.
Abril 2025
Nuno Morna
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