A cruz que ainda nos resta.
[Domingo, entre o comodismo e a consciência, escolhemos quem somos]
No Conclave, antes de deixarem escorregar o voto para dentro da urna, os cardeais, de púrpura, repetem uma frase que soa como se lhes tivesse sido enfiada à força na boca, não por falta de fé, mas pelo excesso dela, que é sempre mais insuportável do que a ausência: “Testor Christum Dominum, qui me iudicaturus est, me eum eligere, quem secundum Deum iudico eligi debere / Eu chamo como testemunha Cristo Senhor, que me julgará, que dou o meu voto àquele que, diante de Deus, julgo dever ser eleito.” Dizem isto em voz baixa, como quem pede desculpa, como quem reza para dentro ou para um passado que já não se lembra deles, como quem teme que a urna, ao engolir o papel, o engula também a ele, com os pecados, com as dúvidas, com o que resta do que outrora foi certeza. Não é tanto fé, é hábito, é um medo cerimonioso de fazer asneira. E fazem-no com o cuidado de quem pousa um filho morto nos braços de uma mãe cega.
Era bom, digo eu, era bom que no próximo domingo, nós, os que não usamos anéis, nem batinas, nem cálices, fizéssemos qualquer coisa parecida. Que antes de riscar o boletim, esse quadradinho trémulo que nos põem à frente como se fosse a nossa última oportunidade de sermos gente, olhássemos para dentro. Para dentro mesmo, com a coragem de quem abre uma ferida antiga só para ver se ainda sangra. E perguntássemos, com a franqueza que raramente temos connosco próprios, em quem acreditamos. Não quem nos convém. Não quem nos prometeram que vai ganhar. Não quem aparece mais vezes nos ecrãs. Mas em quem, lá, no fundo, quando ninguém está a ver, ainda conseguimos acreditar sem nos sentirmos estúpidos.
Porque o voto, essa coisa que nos ensinam a ver como um direito, é, na verdade um espelho. E há espelhos que partem só de serem olhados. Votar por utilidade é como casar por conveniência: uma coisa que se faz com os olhos fechados e que só se percebe quando já é tarde demais. Votar por protesto é como gritar no vazio, ninguém escuta, mas a garganta fica dorida. Votar por fidelidade ideológica é como pôr a mesma música a tocar em todos os funerais: um conforto tão previsível que já nem dói. E o que é mais triste é que nos habituámos a isto. A votar como se fosse uma superstição. A acreditar que, se o fizermos como sempre fizemos, alguma coisa há-de correr bem por engano.
Mas não corre. Não corre, nunca correu. Porque isto não é futebol. Os partidos não são clubes, embora se vistam como tal, com cachecóis e slogans e inimigos de estimação. Os partidos, se formos honestos, são instrumentos, uns desafinados, outros partidos, outros já sem cordas, e a nossa tarefa devia ser escolher o que ainda toca qualquer coisa. E para isso, é preciso escutar. Ler. Perceber. Distinguir entre o que é espuma e o que é mar. E aceitar que o mundo é complexo, que as soluções fáceis são quase sempre aldrabices perigosas, que gritar mais alto não é pensar melhor.
Votar devia ser uma espécie de exame íntimo. Um exame em que se pergunta: quem sou eu, e o que quero deixar aos que vêm depois? Porque votar é isso, um gesto em direcção ao futuro, mesmo quando o fazemos de costas. Não é castigar, não é premiar, não é lavar as mãos como Pilatos. É sujá-las. Senti-las cheias de lama de escolhas imperfeitas, de nomes que não amamos, mas toleramos, de ideias que não nos iluminam, mas ao menos não nos envergonham. Votar, quando feito com decência, é um acto sujo no melhor sentido: sujo de realidade, de prudência, de lucidez. É o contrário da pureza ideológica, essa coisa de crianças crescidas que querem o mundo a preto e branco porque as cores cansam.
Não teremos Capela Sistina, nem frescos no tecto, nem latim sussurrado nas paredes. Teremos uma escola fria, com cheiro a lixívia, funcionários que nos olham como se estivéssemos a cometer um crime, um boletim de voto e uma cruz tremida, feita com uma esferográfica barata que falha a meio do traço. Mas é essa cruz, pequena, tímida, quase patética, que ainda nos salva da irrelevância total. Que ainda nos dá o luxo de escolher quem nos desgoverna. Que ainda nos permite dizer, mesmo que só por um segundo, “fui eu que pus aqui este trapo”.
E se falharmos, ao menos que saibamos que fomos nós. Que não foi o algoritmo, nem o vizinho, nem o jornal. Que fomos nós, com todas as consequências. Porque a democracia, mesmo ferida, mesmo corrompida, mesmo cansada, ainda é um lugar onde se pode ser adulto. Se quisermos. Se tivermos coragem. Se, por uma vez, conseguirmos resistir à tentação de sermos apenas espectadores do nosso próprio desastre.
Maio 2025
Nuno Morna

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