A Escola só precisa de pensar.

in DN Madeira de hoje, 26.05.2025

A Escola só precisa de pensar. 

[O delírio tecnológico do Governo matao que resta de inteligência nas salas de aula]

O Sr. Secretário de Educação anunciou um projecto-piloto para experiência de utilização de Inteligência Artificial (IA) por parte de alunos e professores, já no próximo ano. Disse-o com aquele ar iluminado de quem descobriu a electricidade, com a voz a roçar o entusiasmo dos que confundem novidade com avanço, progresso com ruído, como se meter inteligência artificial na sala de aula fosse o mesmo que meter inteligência nos cérebros ou juízo nos currículos. Há alunos que choram porque não sabem escrever uma carta, alunos de olhos vazios diante de um texto de Eça, alunos que confundem Camões com um influencerde fitness. Não é a IA que lhes falta. É humanidade. É chão. É miolo. É a sujidade luminosa de quem pensa por si, mesmo que pense mal.

A escola não precisa de Inteligência Artificial.

Precisa de qualquer coisa mais antiga, mais funda, mais triste talvez, mas verdadeira. Precisa de inteligência funcional, essa que não se aprende nos “tablets”, nem nos ecrãs, essa que vem de errar muitas vezes, de rasurar a página, de dizer “não percebo” e ficar a olhar para o chão durante minutos até perceber. A escola precisa de alunos que saibam fazer contas com os dedos, sem aquela tralha electrónicatoda, que leiam devagar e se percam a meio de um parágrafo mas voltem atrás, que não tenham vergonha de escrever com letra feia ou de confessar que têm medo de poesia. Porque a escola não é um circo com hologramas, é um lugar de persistência e paciência.

A inteligência funcional parece um bicho extinto, uma espécie de pardal desgraçado que já não se vê nos beirais das janelas das escolas. A inteligência funcional não brilha. Rói. Corrói. Mastiga as dúvidas devagar, como quem chupa um caroço de ameixa. E não tem lugar nestas salas aonde a IA se senta no lugar da frente e dita o que é importante, o que é certo, o que é eficiente. Como se aprender fosse uma linha recta, como se crescer fosse um programa, como se houvesse algoritmo que ensine a ser homem.

Os professores, coitados, ajoelham-se. Dizem “sim senhora, que maravilha”, como quem aceita o diagnóstico de um tumor. Porque vem tudo embrulhado em palavras com brilho: inovação, personalização, interactividade, como se as crianças fossem comandos de televisão, como se a escola fosse um “call center”. Mas ninguém pergunta se os miúdos estão a pensar. Pensar de verdade. Pensar até doer. Pensar até querer sair da sala e ir fumar às escondidas no recreio.

A IA não pensa. Copia o pensamento dos outros, faz aquele barulho limpo e estéril das máquinas de lavar, sem manchas, sem cheiros, sem carne. A IA não sabe o que é duvidar. Não treme. Não sua. Não perde noites a pensar num problema de álgebra como quem pensa numa paixão. A IA responde. Mas quem responde depressa não ouve. E a escola devia ser sobretudo um lugar de escuta. Das ideias, dos medos, do barulho que há na cabeça de um adolescente calado no fundo da sala.
Os alunos, esses, aprendem a correr. A simular. A parecer sabidos. Sabem pesquisar, mas não sabem escolher. Sabem debitar, mas não sabem digerir. Sabem escrever com palavras bonitas, mas não sabem o que querem dizer. Porque ninguém lhes ensinou a pensar com as mãos, com os olhos, com o estômago. Porque ninguém lhes disse que pensar é sujo, é lento, é quase sempre inútil, até que, de repente, se torna indispensável.

A escola precisa de professores que saibam errar com os alunos. Que saibam ficar calados quando não sabem. Que saibam dizer “recomeça”, “lê outra vez”, “essa frase não está bem”, “essa ideia ainda não está pronta”. A escola precisa de tempo. Tempo para não entender. Tempo para repetir. Tempo para fazer figuras tristes. Tempo para se levantar do chão e tentar outra vez. Porque sem isso não há aprendizagem. Há performance. Há teatro. Há fingimento.
E depois, claro, há os adultos todos contentes com a modernidade. A dizerem que agora é tudo mais rápido, mais eficaz, mais bonito. Como se a rapidez fosse sinal de inteligência. Como se ensinar fosse actualizar uma aplicação. Como se a educação fosse um programa de fidelização.
Mas não é.

É carne.
É osso.
É cansaço.
É falhar e tentar outra vez.
É um miúdo a perguntar “porquê?” e o professor a responder “não sei, vamos ver”.
É uma rapariga a escrever um poema sobre a mãe.
É um rapaz a perceber, pela primeira vez, que não sabe ler.
É tudo isso. E mais. E se a escola não for isso, não é nada.
É um teatro de marionetas com luzes “LED”.
É um palácio de vidro onde ninguém se ouve.
É um laboratório onde se mata, devagarinho, a capacidade de pensar.

E o pior é que ninguém repara.

Maio 2025
Nuno Morna 






Comentários

  1. Muito bom o texto estimado amigo, mas lá está ninguém é muita gente, que seja feita justiça pois ando desde 2020 feito Don Quixote de la Mancha a clamar ao vento contra a digitalização da educação e a ser chamado de louco porque ler escrever e contar já não são conhecimentos necessários e o que interessa hoje é aceder ao Google.
    Agradeço a tua vinda para esta luta contra um pensamento ditatorial que impõe o nada como futuro para as nossas crianças.

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    1. Muito obrigado. Vamos juntos combater este combate. É dos bons e merecedor do nosso empenho. Abraço.

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  2. Está próximo o dia em que, na entrada da Escola, estará afixada, para que os jovens não tenham nenhuma ilusão, a máxima dos nossos dias: É PROIBIDO PENSAR.

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    1. Os mecanismos de obviar ao pensamento já lá estão. Só falta a placa na entrada. Abraço.

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