A Grande Laranja e o regabofe da Autonomia: versão madeirense com todos os temperos.

[escrito com fala de povo, como se a ilha mesma se sentasse ao balcão da tasca e desabafasse tudo de uma vez só, entre um dentinho e um copinho de vinho seco]

A Madeira, coitada, ainda se lembra do tempo em que a palavra “Autonomia” fazia levantar a cabeça às gentes como quem reza com fé. Havia orgulho, havia esperança, e havia essa ilusão teimosa de que nos íamos fazer à vida com as nossas próprias mãos, sem andarmos a pedir migalhas ao Terreiro do Paço, como quem espera a borralha¹ depois do pão. Era bonito de ver, os discursos, os planos, os charambas nas ruas. Parecia que a ilha ia finalmente deixar de ser o quintal de Lisboa. Mas logo se viu que em vez de liberdade, o que veio foi um regime de esperteza canina, pintado de laranja, e com cheiro a alface de estufa: grande por fora, vazia por dentro.

O PSD, que por cá se plantou com ares de pai da terra, montou um sistema tão bem engendrado que até parecia coisa de bicho-do-mato com curso superior. Aquilo era uma cangalha bem feita, com todas as peças a funcionar, o governo a distribuir a massa, os empresários a abanar a cabeça como bonecos de feira, os jornais a dar loas ao poder, e o povo, esse, a engolir tudo como quem bebe uma caldeirinha fria. A Madeira virou uma balsa cheia de promessas, sempre prestes a transbordar, mas onde ninguém se molhava, excepto os mesmos de sempre, os donos da balceira.

Chamaram-lhe democracia. Chamaram-lhe autonomia. Mas o que montaram foi uma machinação de bicho alonso², onde tudo estava controlado ao milímetro. As câmaras eram feudos, os de sempre nos concursos públicos sabiam quem ia ganhar antes do edital sair, e os concursos de emprego vinham com nome e apelido já escrito nas entrelinhas. A oposição? Servia para arear os ferros das cadeiras da Assembleia. A imprensa? Essa, quando não era apadrinhada, era atamaneada³ com ameaças e retiradas de convites. E se um jornalista se armava em esperto, aparecia-lhe logo um processo judicial como quem leva com banha de porco quente na cara.

A economia da ilha ficou feita como cama de caseiro em dia de festa: toda arrumadinha, toda controlada, mas com cheiro a mofo. Nada ali era livre. Quem quisesse investir tinha de passar pelo crivo do partido, alinhar no balancé, dançar conforme a música. Havia sempre um carcanholazinho, uma batatada de adjudicações para os amigos, uma boquinha a meio da tarde onde se decidia quem ia para onde. O sector privado? Uma extensão da coisa pública. E os empresários? Muitos deles apanhavam os restos caladinhos, porque sabiam que se dessem um pio fora do tom, eram varridos do mapa como bichos numa broca.

E o povo, o povo… esse aprendeu a viver com medo e conformismo. A juventude, em vez de se armar de ideias, armava-se de currículos que só serviam para emigrar. Os mais velhos, que ainda tinham memória da pobreza verdadeira, aceitavam tudo com esse fatalismo de almas com calo: “Ao menos há obra”, diziam, como se ter estrada a ligar o poio à capela justificasse o roubo lento da dignidade. Os que falavam alto eram tratados como bestuns, como alfinetes num facho. E os que tentavam fazer política fora do sistema eram reduzidos a bisbórrias de tasca, uns coitados, uns caciques ao contrário, sempre a bater com a cabeça na parede.

A cultura, essa, foi a primeira a ser abatida. As casas de cultura viraram bodegas de eventos, onde se faz tudo menos pensar. Os artistas ou se calavam ou passavam fome. Os livros serviam para ornamentar os móveis das Secretarias. E os que ainda tentavam escrever com liberdade, eram atirados ao banco do fundo, como se fossem perigosos. Os jornais viraram charolas de pasquim, cheios de espiritinhos de meia linha e títulos com mais fanfarronice do que sumo. Tudo a cantar hinos ao regime, tudo a repetir os mesmos chavões como papagaios de taberna.

Até a religião, essa última trincheira da consciência, foi apanhada na rede. As festas populares serviam para mostrar a presença do senhor presidente, como se a procissão fosse um comício. A fé foi usada como verniz para o compadrio, como se Deus aprovasse o que o povo há muito já murmura de desgosto. E os verdadeiros crentes? Esses, ou se calavam ou eram encachaçados com discursos cheios de moralidade fingida.

Hoje, a ilha está exausta, aceita tudo e tem na lanzice a estabilidade. Como quem comeu demais e está com a barriga encostada ao bucho. Tudo parece continuar como sempre: os cartazes, os sorrisos, os projectos com nomes em inglês mal traduzidos. Mas por dentro, tudo se escangalha devagarinho, como uma casa velha com as tábuas podres. A juventude continua a fugir. Os que ficam ou se empandeiram em empregos públicos ou se resignam ao bandulho vazio. E os do regime, esses, fingem que ainda mandam, quando na verdade já só ocupam os lugares por inércia, como cadeiras com prego velho.

É por isso que se impõe uma Autonomia nova, uma Autonomia Progressiva, feita com cabeça e coração, mas também com coragem. Uma autonomia que não tenha medo de ser livre, que não use o Estado como bengala, nem o partido como igreja. Uma autonomia onde o mercado seja livre como o mar, onde a cultura volte a ser pensamento e não desfile de chapéus de palha, e onde os jovens não precisem de ir para fora para se sentirem gente.

Uma autonomia onde ninguém se encarangueje ao poder com promessas de coisitas, mas sim com ideias grandes, como os picos da ilha. Onde o mérito valha mais do que a amizade de beira de estrada. Onde se possa dizer o que se pensa sem medo de perder o emprego, a casa ou a paz de espírito.

Porque já chega de falinhas mansas. Já basta de feiras com foguetes e barrigas vazias. A Madeira não é uma boneca de papelão nas mãos de meia dúzia de espertalhões. É terra com alma. Com gente com nervo. E com vontade, muita vontade, de ser, finalmente, livre.

E se não for agora, quando for? Vamos esperar mais quarenta anos de balelas? Vamos continuar a viver como cagões de capela, caladinhos, com medo de dizer que o rei vai nu?

Não. A Grande Laranja pode ter pintado tudo de cor-de-sol, mas o povo já sente a sombra. E quando a sombra aperta, a ilha levanta-se. Como sempre fez. Como há-de fazer outra vez.

¹cinzas ²apatetado ³mal consertada ⁴dinheirinho ⁵pessoa estúpida ⁶pessoa sem importância ⁷estômago ⁸encolha

Maio 2025
Nuno Morna



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