Campismo selvagem: o fingimento da autoridade e o teatro do caos.
[enquanto o lixo se acumula nas serras e o território se esgota, a Secretaria distribui responsabilidades e a redige ofícios.]
Não se trata de acampamentos ilegais, como se tenta fazer crer. Não se trata de turistas mal comportados nem de autocaravanas com espírito nómada, nem sequer de tendas nas levadas ou redes penduradas nos tils da Laurisilva. Trata-se, isso sim, do total e absoluto colapso de uma ideia de governação. Trata-se do momento exacto em que a Região Autónoma da Madeira, pela enésima vez, confessa que perdeu o controlo do território. E fá-lo com a ligeireza burocrática de quem pensa que emitir ofícios é o mesmo que resolver problemas.
A Secretaria Regional do Turismo, Ambiente e Cultura, uma daquelas pastas que, de tão abrangente, acaba por não abranger nada, anunciou aquilo que já se tornou ritual: que vai reunir entidades, reforçar articulações, pedir colaborações, endereçar missivas. Tudo, evidentemente, sem mexer uma palha. Porque o objectivo, como sempre, não é agir, mas parecer que se age. O objectivo é que o assunto morra sob o peso da "coordenação institucional", essa forma superior de empurrar com a barriga. No fundo, a esperança é que, com o tempo, se fale de outra coisa. Como é hábito.
A realidade, porém, é muito mais crua. A Madeira tornou-se vítima do seu próprio marketing. Passou anos a vender-se como paraíso intocado, refúgio natural, cenário de postais e de trilhos para almas em busca de redenção. Encheu-se de slogans, de galardões de clique, de fotografias tiradas com drones. Mas nunca se preparou para a consequência mais óbvia de toda essa campanha: a chegada em massa de pessoas. Pessoas reais, carros reais, lixo, barulho, com necessidades fisiológicas e com a irritante tendência de se comportarem como lhes apetece quando o Estado desaparece. E o Estado, na Madeira, desapareceu há muito tempo.
O acampamento ilegal é apenas o sintoma. O problema está muito antes, no momento em que se decidiu que o crescimento turístico era um fim em si. Um objectivo messiânico, que dispensava planeamento, regras, limites ou senso. Abriram-se as portas, fecharam-se os olhos, e esperou-se que tudo corresse bem. Agora, perante a evidência do desastre, porque é um desastre, faz-se aquilo que se faz sempre: redige-se um comunicado, convoca-se uma reunião, lança-se um apelo à responsabilidade colectiva. A receita da cobardia.
E há ainda a velha táctica de fragmentar o problema para melhor o esquecer. A Secretaria convoca os municípios, os municípios chamam as forças de segurança, estas pedem reforços às câmaras, as câmaras aos escuteiros, e os escuteiros, se calhar, ainda vão pedir ajuda aos turistas. No fim, toda a gente é responsável, o que significa que ninguém é. O resultado é o habitual: ausência de autoridade, caos, e um ambiente que se degrada enquanto os governantes tiram selfies junto a painéis informativos.
Nada disto é acidental. Nada disto resulta de imprevisibilidade. É a consequência lógica de um modelo de desenvolvimento que se quis sempre fácil, imediato, barato. A Região nunca planeou o turismo, apenas o deixou acontecer. Nunca regulou o território, apenas o viu ocupar-se. E agora, perante o inevitável, culpa os outros. Culpa os "praticantes de campismo selvagem", como se tivessem descido de Marte. Culpa os empresários que alugam carros-casa, os turistas que dormem em redes, os influencers das redes. Todos culpados, excepto quem governa.
É extraordinário que, perante a gravidade do fenómeno, o único gesto concreto seja o de pedir mais fiscalização e “enquadramento jurídico”. Como se a falta de leis fosse o problema. A lei existe, o que não existe é a coragem de a aplicar. O que não existe é uma estratégia de uso do solo, uma política de turismo com princípio, meio e fim, uma ideia de paisagem que vá além do marketing. O que existe, isso sim, é um conjunto de responsáveis que confundem poder com presença em eventos, e governação com partilha de responsabilidades.
Talvez o mais revelador seja o léxico utilizado: “anarquia”, “selvajaria”, “ilegalidade”, como se o Estado não tivesse criado ele próprio esse ambiente de descontrolo. Como se não fosse precisamente a omissão do poder político que tivesse deixado a floresta, os miradouros e as levadas entregues ao Deus-dará. Como se alguém, com um mínimo de seriedade, ainda acreditasse que o problema se resolve com uma carta enviada à AMRAM, ou à PSP. E o Corpo de Polícia Florestal que depende do Governo?
O território está esgotado. E o que está em causa já não é apenas a paisagem ou o turismo. É a ideia de autoridade. É a capacidade de uma região governar-se a si própria. Se nem para impedir um acampamento em zona protegida a Região tem poder, ou vontade, então para que serve a Autonomia? Para aprovar projectos de lei simbólicos? Para distribuir dinheiro europeu disfarçado de política? Para manter secretarias inúteis e com nomes bonitos?
A verdade, nua e crua, é esta: estamos entregues. A paisagem natural é o último bem comum que nos restava. E está a ser consumida com a mesma ligeireza com que se aprova um orçamento, com a mesma leviandade com que se fazem campanhas. O acampamento ilegal é apenas o aviso. O desastre, esse, ainda está a vir.
Maio 2025
Nuno Morna

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