Filipe Sousa vai ser comido com cebolada.
[na casa onde os inocentes não duram uma semana]
Entrou, o senhor Filipe, na Assembleia da República com aquele passo curto de quem ainda não sabe se está a sonhar ou se perdeu o autocarro para Santa Cruz. Com os papéis mal dobrados no bolso interior do casaco, a gravata um pouco torta como se a tivesse posto no escuro, a expressão entre o espanto e o enjoo de quem acabou de sair do avião e ainda tem os ouvidos entupidos. Não trazia programa, nem bússola, nem sequer uma ideia clara do que estava ali a fazer, apenas aquele ar cansado de quem julga que basta chegar para mudar, que a política se faz com vontade e que a vontade, quando é pura, derrete as estruturas como o sol derrete a neve dos folhetos turísticos. Não derrete. Nunca derreteu. E muito menos derrete ali, naquele edifício feio e velho onde os gritos cheiram a mofo e os silêncios a conivência.
O senhor Filipe, que em Santa Cruz ainda manda como quem distribui bênçãos de sacristia, pensa que chega a Lisboa e o respeitam por isso. Que o escutam. Que lhe dão tempo. Não lhe dão. E basta ouvi-lo para se perceber que sabe disso. Em Lisboa ou se fala alto ou não se fala. E ele fala como quem se desculpa, como quem pede licença para existir, como se cada palavra tivesse vergonha de sair da boca e fosse tropeçando nos dentes, caindo aos poucos no plenário como folhas mortas, como penas de pombo húmidas de chuva. Até quando se irrita, e irrita-se pouco, parece um funcionário do notariado a reclamar da máquina de senhas, monocórdico, lento, a meia voz. Em São Bento isso é fatal. O Parlamento nacional não é a Câmara municipal. E os adversários não são vizinhos a quem se pede um voto com um sorriso.
Lá dentro, naquela coisa de pedra fria e carpetes sujas, onde o tédio e a vaidade competem entre si para ver quem mói mais devagar, não basta ter sido eleito. Nem basta ser o primeiro. Nem basta vir da Madeira com os votos às costas como se fossem medalhas. Aquilo é um jogo de lâminas. Os que não cortam, são cortados. Os que não gritam, são engolidos. E quem vai sozinho tem de ser dez vezes melhor, dez vezes mais rápido, dez vezes mais preparado. E Filipe Sousa, coitado, até agora só mostrou que é presidente de câmara com discursos de missa de sétimo dia. Não chega.
O que ali se exige é conhecimento, rapidez, instinto, capacidade de sujar as mãos sem perder a compostura. E para isso precisa de gente. Da melhor gente. De técnicos, de juristas, de políticos disfarçados de funcionários, de operacionais com sangue frio e punhal no bolso. Mas não tem. O que tem, ao que parece, é uma equipa habituada a fazer campanha com cartazes e t-shirts verdes. E isso, na Assembleia da República, não serve. Serve para o boletim paroquial. Serve para a festa do partido. Para ali, não.
E depois há o estilo. Aquela maneira de estar sempre a pedir desculpa. Aquela voz. Aquela ausência de brilho, de intensidade, de garra. Como se tivesse medo de incomodar. Como se estivesse a mais. Como se o país fosse um sítio grande demais para ele. O país é mesmo grande demais para ele. E a política, então, nem se fala. Ali, ou se entra de faca na mão ou se vai andando.
Vai durar pouco, Filipe Sousa. Ou muito. Mas será sempre poucochinho. Será aquele deputado que os jornalistas não sabem pronunciar. Que os líderes dos partidos esquecem de convidar. Que os eleitores, daqui a uns anos, jurarão nunca ter conhecido. Um figurante com um mandato nos bolsos, com a alma nos sapatos e a cabeça a matutar se não teria sido melhor ter ficado na ilha, a podar roseiras no jardim da Câmara.
Vai ser comido em cebolada. Em silêncio. Sem glória. Sem sobressalto. E nem sequer lhe hão-de perguntar se a prefere crua ou refogada.
Maio 2025
Nuno Morna
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