Habemus Papam.

O branco a sair da chaminé como um suspiro de velho que se levanta da cadeira, com os ossos a estalar, o fumo a rastejar pelo céu, como se pedisse licença ao tempo, como se dissesse "esperem um bocadinho que ainda não acabou tudo", e os sinos, os sinos, a tocar como se fosse para ninguém em especial, para o ar, para os crentes, para os que já não acreditam, mas passavam por ali, por acaso, como se o acaso existisse e não fosse só uma maneira poética de dizer porcaria da vida. E depois o cardeal com voz de pedra a anunciar o nome dele, como se lesse uma carta de Deus. Robert Prevost. Leão XIV. E de repente uma pausa. Como se a História se tivesse esquecido de respirar.

Um Papa americano, disse-se nos cafés da Europa, com um certo nojo de quem descobriu um cabelo na sopa. Um Papa do outro lado do mundo, como se o mundo tivesse lados e não fosse só esta bola suada a girar no vazio. E ele lá apareceu, o novo, o inesperado, o improvável, a dizer, com lágrimas nos olhos, que era cristão, apenas isso, cristão, como quem se despede de um lugar onde nunca chegou, sem padres, sem bispos, sem hierarquias, sem incenso, sem coroas, sem palavrório. Só cristão, e aquilo a doer mais do que se dissesse Deus.

Não disse sucessor de Pedro, nem servo dos servos, nem vigário de Cristo, disse cristão, e foi como se o mundo caísse para dentro de si num suspiro de vergonha, porque ninguém estava à espera daquela nudez, daquela palavra pequena que sabia a Evangelho, daquelas sílabas com cheiro a pão e suor, e não a ouro e púrpura.

Escolheu o nome de Leão, como quem abre um livro pela última página, como quem regressa ao princípio pela metade do caminho. Não foi o Leão de mármore das catedrais, nem o de ouro das moedas, foi o Leão de Leão XIII, esse que meteu a mão na lama do mundo com a Rerum Novarum e ainda hoje está sujo de justiça, a dizer que a fé sem liberdade é um carcereiro de batina, que o trabalho sem dignidade é um pecado de silêncio, que a Igreja sem os pobres é só um clube de senhoras com véu.

E, no entanto, o que mais pesava não era o nome nem o país, era o cheiro a Agostinho que o seguia como um cão fiel, como um fantasma de Hipona a sussurrar-lhe aos ouvidos coisas que não se dizem. Porque ele é agostiniano, esse tipo de homem que vive com o coração a arder e a cabeça em ruínas, que duvida até de Deus, mas ama-O com os dentes cravados na alma, esse tipo de homem que escreve livros dentro do peito enquanto se confessa a si próprio de joelhos no escuro.

Passou anos no Peru como quem se perde para se encontrar, nas igrejas que cheiram a milho e a incenso barato, nas aldeias onde Deus é uma coisa suja e bonita como um lençol de criança. E trouxe esse cheiro com ele, o cheiro da pobreza, da dúvida, da graça. E trouxe também o silêncio, aquele silêncio que só os que têm fé sabem usar. Um silêncio que não julga. Um silêncio que escuta.

Leão XIV. Um nome que pesa como chumbo. Um nome que não quer agradar. Um nome que pede contas à História. Um nome que tem dentro o rugido de quem sabe que não se grita para ser ouvido, mas para acordar-nos. A nós, todos, todos, todos nós, a dormir com os olhos abertos diante das catedrais, com as mãos geladas de fé, com a boca cheia de nada.

E é isto, por agora: Habemus Papam. E ele disse que era cristão. Como quem diz, sou homem. Como quem diz, sou pecador. Como quem diz, sou livre. Como quem não precisa de dizer mais nada.

Maio 2025

Nuno Morna



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