Intervenção Social para Totós.

Talvez comece a partir da casa da Dona Rosa no Porto Moniz, a casa baixa, húmida, onde se escutava o mar como um ronco doente ao longe e o silêncio era feito de medo e de roupa estendida ao sol que nunca secava. A Dona Rosa dizia-me que quando as coisas não vêm do Governo, vêm de Deus, e eu perguntava-lhe se o Governo e Deus não eram a mesma coisa, ela respondia com um gesto, como quem afasta moscas ou pecados, e punha mais água na sopa. Foi ali que aprendi o que era o Terceiro Sector, embora não lhe soubesse o nome: a vizinha que trazia pão, o primo que reparava a torneira, o padre que fazia de carteiro e psicólogo e enfermeiro e pai. Agora chamam-lhe IPSS, Misericórdias, Associações, projectos comunitários financiados por fundos europeus, mas, no fundo, são a mesma coisa: o que sobra da ausência, o remendo de um Estado que não chega.

Na Madeira, isso é ainda mais claro. Porque aqui o mar não é só geografia, é destino. E quem manda não vem, quem manda, manda de longe, e quem está perto não manda. O Governo Regional constrói auditórios e estátuas e rotundas e rotundas com estátuas e estátuas com auditórios, mas no norte, nas casas escondidas pelo matagal, vivem velhos com as pernas a inchar e o coração esquecido. As estatísticas dizem que somos pobres sem sabermos que o somos. Eu acho que sabemos. Só que o silêncio já se tornou hábito. Um silêncio educado, bem-posto, como o dos almoços de domingo em que ninguém fala de política, nem de vícios, nem de filhos que foram para fora e nunca mais voltaram. O Terceiro Sector, que nome feio a cheirar a sovietismo, é o nome técnico para aquilo que resta quando tudo falha.

E falha. Falha muito. Oiço dizer que representa cinco, vírgula qualquer coisa por cento do emprego. Três, vírgula qualquer coisa por cento do valor acrescentado. E pergunto: que valor? Que emprego? O das mulheres que limpam casas por fora do recibo? O dos homens que carregam sacos nos hotéis e desaparecem à noite sem ninguém lhes saber o nome? Na Madeira há uma economia que não se mede: a economia do favor, da troca, da sobrevivência. E dentro dela, as IPSS. As associações. Os centros sociais que são, ao mesmo tempo, lugar de convívio e confessionário, e refeitório, e farmácia, e gabinete de queixas. Ali, entre o cheiro da sopa, o creme para as varizes e o crucifixo torto, mantém-se uma dignidade mínima. E essa dignidade não se contabiliza no PIB.

Falam em quatro eixos. Como se isto fosse um carro. Como se as vidas das pessoas se arrumassem em categorias limpas. Primeira categoria: infância. Projectos para apoiar crianças em situação de fragilidade. Como se houvesse outra situação possível. Uma criança que nasce no Caniçal, numa casa onde o tecto tem bolor e a avó dorme com ela porque a mãe saiu para comprar cigarros e não voltou, essa criança já não está em risco, está dentro do risco. Vive nele. Nada nele. Depois falam da família como unidade transformadora. E eu pergunto: qual família? Aquela que existe nos formulários? A família do pai que trabalha num restaurante no Funchal e chega tão tarde que os filhos já dormem e sai tão cedo que eles ainda não acordaram? A família da rapariga de dezassete anos que tem um filho, um companheiro com tornozeleira para estabilizar o tornozelo e uma avó que já não ouve? A unidade familiar, dizem. Como se fosse um termo de engenharia.

Segunda categoria: solidariedade. Apoiar pessoas em situação de exclusão. Como se a exclusão fosse um casaco que se tira com projectos. Como se não fosse o próprio tecido social que está podre. Nos bairros sociais, Hospital, Torre, Nazaré, vivem histórias que não entram nas candidaturas. Histórias de vergonha, de dívida, de medo. A senhora que vai à associação porque não tem com quem falar. O miúdo que fica na rua porque o ATL está fechado. O homem que bebia e deixou de beber e agora não sabe o que fazer com o tempo. A exclusão não se combate com papelada. Combate-se com presença. Mas presença não dá prémio. Nem foto na página do Facebook da Secretaria.

Terceira categoria: seniores. E aqui a dor é mais funda. A Madeira envelhece, sim, como o resto do país. Mas aqui envelhece-se sozinho. Envelhece-se em casas cheias de recordações e cheias de silêncio. Envelhece-se com medo de cair, com medo de chamar, com medo de precisar. O Governo diz que vamos construir mais lares, que nos vai dar mais camas, e algo está errado quando contabilizamos necessidades por camas. E depois? O que é um lar que ninguém visita? Onde se vê televisão o dia inteiro, com o som alto para fingir companhia? A Secretaria fala de protocolos. Eu falo de abraços. Eles falam de grelhas de avaliação. Eu falo da mulher que olha pela janela durante horas. A política envelhece-nos mais depressa.

Última categoria: capacitar. Palavra de técnico. Palavra sem alma. Capacitar é ensinar a andar com as próprias pernas, dizem. Mas como se ensina isso a quem nunca teve chão? A Madeira está cheia de cursos, de formações, de sessões de motivação. O que falta são empregos. Empregos reais é não os fingidos para alimentar percentagens e que só potenciam angústias. Empregos com direitos, com futuro. Empregos que permitam sair de casa, comprar pão e pagar contas sem medo. Empregos que libertem. Capacitar é dar poder. E o poder, aqui, está fechado em gabinetes com alcatifa e com gente que acha dentro.

Por isso, digo, criemos um fundo. Um Fundo Regional para a Inovação Social. Um fundo que não dependa do Governo. Que premie quem está no terreno. Que confie em quem sabe. Um fundo que diga: aqui está o dinheiro, agora façam. Mas sem as amarras de sempre. Sem os amigos do costume. Sem os projectos que existem só para justificar outro projecto. Um fundo que sirva para libertar. E não para controlar.

Porque, no fim, a autonomia não é um documento. Nem uma linha no Orçamento. A autonomia é a capacidade de cuidar. De si. Dos seus. Do vizinho. De quem ficou para trás. E enquanto a Madeira precisar que o Governo decida tudo, até como se ajuda, não será autónoma, porque não há Autonomia na dependência. Assim, a Madeira, será sempre uma criança que finge que já cresceu, mas ainda dorme com a luz acesa.

E talvez seja isso que me inquieta mais: esta infância prolongada. Esta vida a meio caminho. Esta terra que sabe o que precisa, mas espera sempre que alguém venha resolver. A Dona Rosa dizia que o Governo não é Deus. E Deus, às vezes, também não aparece.

Maio 2025

Nuno Morna



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