O árbitro não te salvou.
[A fábula cómoda da culpa alheia quando a derrota é só nossa]
Durante noventa minutos mais os restos do tempo que sobram das lesões fingidas, das quedas como se tivessem levado um tiro, do teatro pobre de homens pagos para correr atrás de uma bola, o futebol transforma-se no que sempre foi: uma telenovela de suor e gritos com moral à mistura, onde todos, o homem de bigode no bar da esquina, o rapaz de calções pendurado no telemóvel, o treinador que berra com o quarto árbitro como se fosse o pai que nunca teve, todos, sem excepção, exigem justiça, justiça imediata, justiça exacta, como se o futebol fosse um tribunal ou um confessionário, e o árbitro o Deus invisível de apito na boca, pronto a separar o bem do mal com cartões coloridos. A primeira falta não assinalada e começa a epopeia. A tragédia. O caos. O coro grego. A nossa Senhora das Causas Perdidas. Perdemos, dizem eles, porque aquele senhor de preto não viu aquilo que todos viram, excepto ele, ou não quis ver, ou viu, mas não marcou. E, nesse instante, nasce uma história, uma daquelas histórias onde tudo se explica e tudo se consola, onde a responsabilidade se esfuma como fumo de cigarro no balneário, e tudo o que sobra é a certeza, a única certeza, de que não foi culpa nossa.
O que ninguém quer dizer, ou pensar, ou sequer murmurar, é que o futebol é um bicho estranho, um caos vestido de regras, um novelo de pernas, ângulos, botas e acasos, onde uma coisa nunca leva directamente à outra e onde a causalidade é uma palavra bonita que não serve para nada. O que conta no futebol não é a verdade dos factos, é a verdade da dor. E a dor precisa de culpados, de explicações rápidas, de frases ditas com raiva e convicção na rádio e televisão. Ninguém quer saber que uma falta aos doze minutos não é uma profecia, que um cartão amarelo a meio do campo não é uma sentença. Ninguém quer ouvir que entre essa falta e o golo sofrido no minuto oitenta e sete aconteceram vinte e sete lances, duas substituições, um ressalto estúpido, um passe errado e uma hesitação de um defesa que pensava na mulher que o deixou ontem. Mas isso não dá para contar. Isso não dá para gritar no Facebook.
E depois há isto: essa ânsia de transformar o futebol numa equação, como se tudo pudesse ser medido, controlado, calculado. A estatística, coitada, que só queria ser levada a sério, diz-nos que os erros de arbitragem são como a chuva: caem em todos os campos, molham todos os clubes, e evaporam-se depressa. Mas o adepto não quer ouvir estatísticas. Quer ouvir que foi gamado. Roubado. Humilhado. Quer dizer ao vizinho que se o árbitro tivesse marcado aquilo, tinha sido diferente, o jogo virava, o universo realinhava-se e o avançado não tinha falhado de baliza aberta como falhou. Mesmo que isso vá contra o que diz a teoria das probabilidades (todas elas), contra a estatística inferencial e contra a filosofia da causalidade. A relação directa entre decisão arbitral e resultado final revela-se, na esmagadora maioria dos casos, uma falácia narrativa, uma construção ilusória que mascara a complexidade probabilística do jogo. O futebol é feito de contrafactuais, esses fantasmas que nos visitam depois das derrotas e sussurram ao ouvido: e se, e se, e se. E se o árbitro? E se o VAR? E se não tivesse sido canto? E se não tivesse sido domingo? E se o avô não tivesse morrido? E se a invasão da Ucrânia não tivesse ocorrido?
Mas os contrafactuais, como tudo o que não existe, não se provam. Vivem no mesmo lugar onde vivem os sonhos, os traumas e os amores de Verão. Não é possível rebobinar um jogo, corrigir um erro, reescrever um desfecho. O futebol é o que é. Um presente contínuo de falhas, acasos e esperanças. Um jogo onde os heróis tropeçam, os vilões são promovidos e os árbitros erram como qualquer um de nós, sem querer ou às vezes querendo, mas erram. E depois seguem, como nós, para casa.
A verdade, se é que alguém a quer ouvir, é que tudo isto é uma maneira de evitar dizer a frase mais difícil de todas: "não fomos bons o suficiente". Preferimos gritar contra o árbitro do que admitir que não há génio na nossa equipa, que os nossos jogadores são banais, que o treinador não percebe o jogo, que o clube está entregue a empresários de gravata e a promessas de que para o ano é que vai ser. Como no país, no fundo. Porque o futebol é isto: um espelho suado e sujo onde nos olhamos sem nos ver. E onde todas as semanas voltamos à missa da bola, com fé renovada, à espera do milagre que nunca chega. E quando não chega, como não pode chegar, culpamos Deus. O árbitro.
E assim andamos, jogo após jogo, como andamos vida fora, a construir histórias para não viver com os factos. A transformar cada erro num martírio, cada decisão num julgamento, cada derrota numa conspiração. Porque é mais fácil inventar uma injustiça do que enfrentar a mediocridade. Porque é mais reconfortante culpar o apito do que olhar para o banco e ver que está vazio de ideias, vazio de talento, vazio de futuro. E porque, no fim, o futebol não nos mostra quem somos quando marcamos. Mostra-nos quem somos quando perdemos. E quase sempre, o que somos, é isto: crianças zangadas à espera que o árbitro peça desculpa.
Maio 2025
Nuno Morna
PS: que o Mateus Reis devia ter sido expulso? Claro que sim. Não há nenhuma dúvida. Mas se isso iria condicionar o resultado final... é outra história.
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