O Clube dos Idiotas Mortos.

A Madeira. Esta terra parada no tempo como a moldura em cima de móvel velho, a Madeira onde os nomes se repetem como se fossem genéricos, heranças passadas por via sanguínea ou por promessas ditas baixinho à mesa de um restaurante de hotel com cadeiras forradas a veludo. A Madeira esta espécie de coisa suspensa entre a nostalgia e a decadência, sustenta-se numa paz de cemitério, uma paz feita de favores murmurados, de empregos oferecidos com o cuidado com que se oferece uma flor a uma senhora de luto, uma paz que cheira a mofo e a papel de parede velho, e é nessa paz que se fundou, sem querer, o Clube dos Idiotas Mortos, não fundado com acta nem notário mas com silêncios, com sorrisos de quem finge saber o que está a fazer, com convites para inaugurações onde toda a gente finge que aquilo é progresso e desenvolvimento e mais não é do que a mesma porcaria pintada com tinta nova.

Chamam-lhe estabilidade, como se estabilidade fosse um valor e não um sintoma de doença, como se não fosse precisamente a estabilidade que nos tem mantido neste torpor, nesta dormência que se parece mais com um coma do que com paz social, chamam-lhe estabilidade com a mesma fé com que os velhos da minha infância diziam “se Deus quiser”, e talvez queiram mesmo Deus, mas um Deus que mantenha tudo na mesma, que não incomode, que não exija mudanças nem pensamento, porque pensar é incómodo e na Madeira não se pensa, repete-se, reza-se, acha-se, aceita-se, e quem pensa é olhado como se fosse um delinquente, um provocador, um herege.

E os idiotas, os tais idiotas mortos, não são os piores, os piores são os que os alimentam, os que lhes batem nas costas, os que dizem “grande homem” quando sabem que não é, os que alinham no jogo porque têm medo de não ter lugar à mesa, à mesa onde se distribuem cargos, pequenas verbas, pequenos poderes, pequenos silêncios, à mesa onde se decide quem sobe, quem desce, quem aparece na fotografia e quem desaparece, e tudo isto feito com uma naturalidade de missa antiga, como se a corrupção fosse uma tradição e a impunidade um costume.

Há presidentes de câmara que nunca leram um livro mas falam de cultura, há secretários que mal sabem escrever mas redigem estratégias, há deputados que nunca pensaram uma ideia mas discursam como se fossem iluminados, e todos juntos, essa espécie de corte sem rei mas com criados, todos juntos compõem este clube, este clube de idiotas que não sabem que estão mortos porque ainda se mexem, porque ainda têm cartão do partido, porque ainda são convidados para almoços.

E o povo, esse, esse aguenta, aguenta com a paciência dos doentes, dos que aprenderam a sofrer calados, dos que dizem “é o que temos” como quem diz “não há nada a fazer”, e se alguém tenta fazer alguma coisa é logo acusado de querer dar nas vistas, de ser invejoso, de não respeitar os mais velhos, como se o respeito fosse outra forma de resignação e a obediência uma virtude.

E os jovens vão-se embora, claro que vão, vão porque sentem o cheiro a podre, o cheiro das ideias mortas, das palavras mortas, dos projectos que já nasceram defuntos, e os que ficam ou se calam ou se adaptam ou fingem que lutam para não enlouquecerem, e isto, isto é o clube, este clube sem estatutos, sem sede, sem reuniões, mas com presença constante, um clube que se insinua como humidade pelas paredes da casa, como saudade pelas fotografias antigas, como vergonha pelos jantares em que se aplaude o vazio.

E o pior, o mais triste, o mais devastador, é que todos sabem. Todos sabem o que se passa, todos conhecem os nomes, todos sabem quem rouba, quem mente, quem manipula, e todos se calam porque todos dependem, todos precisam, todos têm um filho, um primo, uma mulher, todos esperam a sua vez, a sua esmola, a sua pequena fatia do bolo rançoso.

E um dia, talvez, talvez alguém diga basta. Talvez alguém pegue fogo ao clube, parta os retratos, rasgue os discursos, devolva os cartões. Talvez alguém perceba que autonomia não é servidão dourada nem liberdade vigiada. Talvez, um dia, os vivos se revoltem contra os mortos e os idiotas sejam devolvidos à obscuridade de onde nunca deviam ter saído. Mas até lá, até lá, continuaremos todos, todos, a fingir que isto é normal, que isto é aceitável, que isto é vida. Quando não é. Quando nunca foi. Quando nunca será.

Novembro 2024

Nuno Morna



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