O Voto não é um Cheque em Branco.

[Democracia não é obediência]

Jaime Filipe Ramos disse, de cabeça erguida e voz firme, como quem declama naquele hemicíclo, disse que o povo decidiu, que o povo disse quatro anos de estabilidade, e o que me ocorre, não me perguntem porquê, é o meu tio-bisavó a repetir, entre goles de bagaço e tragos num cigarro curto, que os mortos não falam mas ouvem tudo. Talvez ouçam mesmo, e talvez essa estabilidade de que fala, de peito feito e com o dedo apontado como quem ameaça um cão, seja a mesma estabilidade dos cemitérios onde as pedras estão alinhadas, os nomes grafados em letras douradas nas lápides, e só se ouve o vento a varrer folhas mortas e o silêncio duma terra onde nada muda, porque mudar é perigoso, mudar faz pensar, mudar dá trabalho.

Disse também, com aquele ar de quem sabe que nunca vai sair da fotografia, que o povo escolheu quem está melhor preparado para governar, como se governar fosse um prémio de comportamento, como se não fosse um vício antigo, uma doença que se apanha em criança, quando se aprende a dobrar as palavras como guardanapos e a sorrir só com os dentes, sem mexer os olhos, porque os olhos denunciam tudo, até a vontade de fugir. Preparado para governar está quem sabe onde estão os telefones, os alçapões, os silêncios, os favores e os esquecimentos. Preparado está quem aprendeu que as ideias atrapalham, que as convicções cansam, que a decência dá prejuízo. E é por isso que governam sempre os mesmos, porque são os únicos suficientemente cínicos para suportar o poder sem vomitar.

Depois, como quem encolhe os ombros perante um corpo morto no tapete da sala, disse que nas legislaturas anteriores se desperdiçaram oportunidades de fazer valer propostas da oposição. E eu lembro-me de um cão, um setter velho, deitado à sombra do limoeiro no quintal da casa da minha avó, a olhar para mim como se soubesse que não valia a pena ladrar, porque ninguém escutava, e penso se a oposição não terá sido sempre esse cão velho, a tentar dizer qualquer coisa entre os latidos, mas os senhores da varanda, com os copos de gin e as gargalhadas untadas de poder, preferiram fingir que ele não estava lá. A oposição serve para isso: para fingir que há contraditório, para que o monólogo do costume pareça diálogo. E agora, com a cara lavada pelo voto, vêm dizer que foi ela quem desperdiçou? Eles, que passavam os dias a varrer as ideias dos outros para debaixo da carpete? Que se recusaram a votar favoravelmente muito com que até concordavam?

A seguir, talvez já farto das próprias palavras, Jaime disse que o programa do Governo é o que a oposição rejeitou, e fiquei a pensar naquele filme em que uma mãe, doente, pede ao filho para dizer em voz alta o “Padre Nosso”, é o filho estava demasiado zangado com Deus para o fazer, e ela morreu no dia seguinte. É que este programa, este documento solene e plastificado, tem o mesmo peso emocional de uma bula de aspirina, escrito por gente que não acredita, mas que repete as palavras certas para que ninguém lhes pergunte nada. Não se rejeita um programa por desfastio ou teimosia, rejeita-se porque está errado, porque é pobre, porque é o mesmo de sempre com uma capa nova. Rejeitar não é desobedecer ao povo, é tentar salvá-lo do tédio, do embuste, da repetição.

Mas o mais belo, o mais patético talvez, foi quando disse, com a voz de quem anuncia o fim do mundo, que não colaborar é rejeitar a vontade popular, como se a vontade popular fosse uma coisa pura, clara, sem contradições, sem ruídos, como se o povo, esse conceito abstracto e conveniente, não estivesse farto, dividido, cansado de promessas com prazo de validade de iogurte. O povo não quer estabilidade. O povo quer vida, quer esperança, quer que os filhos fiquem, que os velhos tenham nome, que as ruas sejam mais do que passagens para o trabalho. E a colaboração, esse verbo triste, só existe quando há respeito, não quando há imposição. O Governo exige colaboração como quem exige silêncio. E o silêncio, quando se prolonga, vira doença.

E então, com o orgulho de um rapaz que conseguiu dizer o poema sem tropeçar, concluiu que o povo madeirense disse “deixem-se de brincadeiras”, e eu vi, juro que vi, a imagem da minha professora de latim a bater com os nós dos dedos na secretária, irritada com as nossas gargalhadas. Mas as brincadeiras, meu caro Jaime Filipe, são vossas. Brincaram com o dinheiro, com a terra, com as promessas, com os concursos, com os nomes e com os cargos. Brincaram com as pessoas. Brincaram com a Madeira como uma criança brinca com um brinquedo até o partir. E agora, quando o brinquedo range e ameaça desmanchar-se, dizem que não há tempo para brincadeiras.

Finalmente, como quem fecha o portão da quinta ao cair da noite, falou do comando de Lisboa e dos jogos de poder, como se o PSD-M não tivesse passado décadas inteiro a ajoelhar-se aos senhores do continente, como se não tivesse lambido as botas de todos os que garantissem a transferência dos milhões, como se agora quisesse convencer-nos de que é uma espécie de D. António Prior do Crato, último reduto da independência nacional. Mas é só mais um actor, cansado, numa peça repetida até à exaustão, com as falas decoradas e o público a dormir.

A Madeira não precisa de estabilidade. Precisa de coragem. Não precisa de colaborações forçadas. Precisa de liberdade. Precisa que alguém tenha a decência de dizer que o rei vai nu, que o poder está gasto, que a esperança está cansada. E talvez, um dia, se alguém tiver coragem para abrir as janelas, entre finalmente um pouco de ar.

Maio 2025

Nuno Morna



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