Plataforma Liberal Autárquica.

[Os que ousaram pensar diferente, quando pensar já não servia de nada]

Parte I - Onde começa o princípio: ou as cidades que deixaram de ser nossas.

Não sei quando começou, talvez no instante exacto em que deixámos de distinguir o cheiro do mar do cheiro do gabinete, as janelas abertas sobre os telhados das cidades antigas e o cheiro do suor dos arquivos, o mesmo cheiro dos corredores compridos com candeeiros de néon onde a esperança vai morrendo aos poucos, uma esperança minúscula, entubada, em coma, cheia de fios e de relatórios que ninguém lê. Talvez tenha começado aí. Ou então quando, ainda com as mãos sujas de entusiasmo, alguém disse a frase proibida: “isto pode mudar”, e o silêncio, esse silêncio quente e sujo das repartições públicas, caiu sobre nós como uma toalha húmida.

E foi então que se escreveu o texto. Esse texto. O texto que não devia ter sido escrito. O texto que não cabia nas reuniões da câmara nem nos discursos dos presidentes nem nas palmadinhas nas costas dadas no final de cada inauguração de rotunda. O texto que chamámos, sem ironia, Plataforma Liberal Autárquica, como quem nomeia um filho que já sabe que vai morrer novo. E talvez por isso, escrevê-lo tenha sido uma forma de resistência. Uma forma de gritar baixinho.

Porque os modelos clássicos falharam, meu Deus, como falharam. Falharam de uma maneira tão óbvia que até os mortos se riem, os mortos sentados nas assembleias municipais, os mortos com gravata e cargos vitalícios, os mortos que não sabiam que estavam mortos porque todos os dias assinam papéis. Falharam porque governar passou a ser uma rotina, uma coisa de Excel, um ofício feito de carimbos e favores. Falharam porque a cidade deixou de ser corpo e passou a ser papel. Porque as câmaras deixaram de ser casas e passaram a ser caixas.

E então, no meio da escuridão, alguém disse “Pensar Global e Agir Local”, e foi como acender um fósforo num túnel. A frase era de um escocês, Patrick Geddes, um nome que ninguém pronunciava direito, mas que soava bem nas reuniões de estratégia. E o mais estranho é que a frase fazia sentido. Porque era disso que se tratava: não de prometer, não de construir para aparecer no jornal, não de ir à missa com a faixa ao peito, mas de perceber o mundo, perceber o bairro, perceber o morador. E fazer com que isso valesse alguma coisa.

E assim escrevemos. Com raiva e com ternura. Com indignação e com método. Com uma estranha alegria que vinha do acto de dizer o que ninguém queria ouvir.

Foi em 2021 e lê-lo agora é visitar o presente. Continuar a sentir que 4 anos passados tudo aquilo ainda faz sentido. Ainda faz mais sentido.

Propusemos que os municípios se tornassem inteligentes. Mas inteligentes a sério, não com artificialismos e slogans, mas com wi-fi público nos bairros onde o acesso à internet é um luxo, com sistemas de rega que sabem quando devem regar, com iluminação que se adapta à presença das pessoas como quem percebe que a cidade é feita de gente, com contadores que contam o que deve ser contado, com gestão dos resíduos que respeite quem limpa, com automatização dos edifícios, com sensores e dados e gestão do tráfego, não porque está na moda, mas porque faz sentido.

E fomos mais longe. Dissemos: abram os dados. Deixem os cidadãos ver. Não escondam os números, não filtrem a realidade, deixem que a informação circule como o sangue circula. Chamem as empresas, chamem quem sabe, mas façam-no com abertura. E vimos nos olhos dos outros aquele olhar de quem percebeu que já não pode fingir que não ouviu.

Depois falámos da máquina. Da máquina enferrujada que teima em ranger em cada movimento. Da administração que não responde, dos processos que se perdem, dos funcionários que se resignam. E propusemos uma coisa absurda: reformá-la. Criar um Balcão Único de Serviços, onde o cidadão não tenha de se ajoelhar para ser atendido. Digitalizar tudo, simplificar tudo, descentralizar. Dar às Juntas de Freguesia o poder que merecem, não como esmola, mas como reconhecimento.

Falámos da adesão à Rede de Cidades Criativas e Inteligentes. Falámos de e-government. E falámos de inovação social, essa expressão que parece tirada de um manual de sociologia, mas que no nosso texto queria dizer: liguem-se aos outros. Aos movimentos associativos, às empresas, às ONG, aos vizinhos. Partilhem. Abram. Juntem esforços para resolver o que ninguém consegue resolver sozinho: o envelhecimento, o desemprego, a solidão, a desigualdade, o planeta que se parte aos poucos.

E depois veio a economia. E aí, sim, fomos heréticos. Porque dissemos: o novo não precisa matar o antigo. As startups podem conviver com o comércio local, a inovação pode abraçar a tradição. Falámos de protocolos com privados, de incubação de empresas, de trazer os nómadas digitais, mas também de revitalizar artérias comerciais. De fazer da cidade um organismo vivo, onde cada parte alimenta a outra. E tudo isto sem slogans, sem promessas milagrosas, sem fé cega no progresso.

E então, e só então, percebemos o que estávamos a fazer. Estávamos a escrever um texto que não era um plano de governo. Era um gesto. Um acto de sanidade no meio do delírio. Um manifesto feito de palavras simples e ideias sólidas. Um mapa para um lugar que talvez não exista. Mas que, mesmo assim, precisamos de desenhar.

Porque se não formos nós a escrevê-lo, quem o fará?


Parte II - A luz, os escombros e o silêncio nas autarquias locais.

E depois, depois de tudo o que se pode escrever sobre a cidade enquanto corpo - corpo doente, corpo sem nervos, corpo sem memória - chegava o momento da luz. A luz crua e feia dos corredores onde o tempo não passa, onde se escondem decisões como se fossem cadáveres, onde os papéis se acumulam como folhas no outono, papéis que ninguém lê, que ninguém entende, que servem apenas para que tudo pareça legal, limpo, transparente, como se a transparência fosse um vidro embaciado por dentro. E dissemos: basta.

A transparência, escrevemos nós com o coração apertado, não pode ser mais uma palavra entre outras. A transparência tem de ser um acto. Um gesto. Um rasgar de cortinas. Um grito. Propusemos, com a ingenuidade dos que ainda acreditam, um Portal de Transparência, onde se colocasse tudo, tudo, não apenas o que convém. Contratos. Actos. Nomeações. Concursos. Minutas. Gastos. Projectos. Viagens. Agendas. Cada gesto registado, cada euro justificado, cada silêncio desfeito.

Propusemos também que todas as reuniões da câmara municipal fossem transmitidas em directo, como um reality show do país real, com os vereadores a tropeçarem nas suas próprias frases, com os silêncios a denunciarem os interesses, com a verdade a espreitar por entre os papéis deixados por assinar. E dissemos ainda que os vereadores deviam publicar diariamente as suas agendas: com quem falaram, o que discutiram, para onde foram, em que almoços estiveram. Porque governar, escrevemo-lo sem medo, é um acto público. Porque o poder, mesmo o pequeno poder de um vereador que manda pintar passeios, não é propriedade privada.

E foi aí que nos chamaram arrogantes. Sonhadores. Tecnocratas. E sorrimos, porque sabíamos que tínhamos tocado na ferida.

Falámos ainda de um plano municipal anticorrupção. Como quem escreve um obituário antes da morte. Não uma cartilha de boas intenções, mas um conjunto de medidas com indicadores, objectivos, metas. Coisas sérias. Coisas que se podem medir. Coisas que, por isso mesmo, assustam. Porque implicam responsabilidade. Porque obrigam a responder por actos. E ninguém quer responder. Querem continuar a assinar papéis às escondidas e a sorrir nas fotografias.

Mas a política, dissemos nós, não é apenas contas. É também espírito. E por isso falámos de cultura. Não daquela que se resume a concertos na praça ou a subsídios para a tuna do primo do presidente. Mas de cultura como tecido vivo das cidades. Como alma das ruas. Como memória das paredes. Propusemos o mapeamento rigoroso do património local, como quem tenta salvar os restos de um naufrágio. Falámos da diplomacia dos monumentos, da necessidade de os tratar não como pedras mortas, mas como pontos de encontro, pontos de começo, pontos de regresso.

E fomos mais longe: geminações com sentido, indústrias criativas com futuro, projectos intergeracionais que ligassem os netos aos avós, iniciativas interculturais que fizessem das nossas cidades lugares onde todos cabem, mesmo os que vieram de longe, mesmo os que não sabem dizer o nome da terra onde nasceram em português escorreito.

Falámos de equipamentos desportivos usados a sério, e não apenas para sessões fotográficas. Falámos de lazer como direito, não como luxo. Falámos de praças cheias de crianças, de trilhos marcados com cuidado, de parques onde as pessoas não têm medo de estar sozinhas ao fim da tarde.

E depois veio o ambiente. O mais difícil. O mais manipulado. O mais traído.

E dissemos: chega de plantar árvores para a fotografia. Façamos rearborização urbana com critério, com beleza, com ciência, com sensibilidade. Façamos parques com zonas de silêncio, com circuitos para os corpos que envelhecem, com espaços de contemplação onde se possa respirar sem pressa. Façamos cidades onde as árvores tenham sombra e não só folhas.

Falámos de proteger a orla costeira, e sabíamos que estávamos a declarar guerra. Porque ali, na terra junto ao mar, é onde se constroem os favores, os hotéis, os empreendimentos, as avenidas da vergonha. Propusemos mapear as veredas, limpar as bermas, penalizar o consumo abusivo de água, promover a compostagem, criar ecovilas, aplicar o princípio do utilizador-pagador, crir o seguro de saúde municipal. E sabíamos, claro que sabíamos, que estávamos a pedir demasiado. Mas alguém tinha de o fazer.

Porque há momentos em que o silêncio é crime.

E o que fizemos naquele documento, naquele texto escrito como quem escreve uma carta a um amigo que morreu há muitos anos, foi isso mesmo: romper o silêncio. Dizer sim, é possível fazer diferente. E sim, vai doer. Vai custar. Vai deixar cicatrizes. Mas é melhor do que continuar a fingir que viver nas nossas cidades é normal. Que ver o lixo acumulado, o património ao abandono, os velhos sozinhos nos bancos de pedra, é natural. Que ser governado por quem não presta contas é inevitável.

A Plataforma Liberal Autárquica foi isso. Um grito. Um gesto. Uma esperança escrita a negro no papel branco.

E como todas as esperanças, foi ignorada.


Parte III - O que fica depois do silêncio.

E no fim, no fim de tudo, o que é que sobra? Sobra o papel. Sobra o texto impresso numa fonte demasiado pequena para quem já tem os olhos cansados, o texto dobrado ao meio e guardado no bolso do casaco de alguém que não foi eleito, ou que foi, mas percebeu tarde demais que a política começa onde os programas acabam. E sobra o silêncio, claro. O silêncio de quem leu mas não respondeu. O silêncio dos jornais. O silêncio dos adversários que nem sequer fingiram discordar, ignoraram, que é pior. O silêncio dos próprios companheiros de partido, demasiado ocupados com as listas, as quotas, os drinks de fim de tarde, os convites para jantares em restaurantes com nomes estrangeiros.

Mas o documento, esse, ficou.

Ficou como um mapa de uma Madeira possível. Uma Madeira que não se constrói com palavras, mas começa nelas. Uma Madeira onde as câmaras municipais não são agências funerárias da vontade popular, mas laboratórios de esperança. Uma Madeira onde as ideias não servem apenas para adornar os debates, mas para orientar as decisões. Uma Madeira onde a inteligência não é uma excentricidade. Onde propor um balcão único de serviços não é tratado como ficção científica. Onde dar internet gratuita não é um luxo escandinavo (e que o fosse). Onde transmitir as reuniões municipais em directo não é considerado uma ameaça à paz social. Onde se pode dizer, sem ser crucificado em praça pública, que o comércio tradicional e as startups não são inimigos. Onde os ecossistemas empresariais se fazem de gente que fala entre si e não de gabinetes em guerra fria.

Ficou a ideia, também, de que os velhos importam. E não só em tempo de eleições. Que cuidar dos mais velhos é um acto de civilização. Que pólos de convivialidade, onde os idosos não se tornem invisíveis, podem ser mais importantes do que inaugurar mais uma obra com placa. Que os miúdos e os velhos têm de se encontrar, porque é entre eles que vive a memória e sem memória, nenhuma cidade é cidade. É só uma estrutura administrativa com orçamento.

Ficou a ideia de que a água não é um direito incondicional, mas um recurso finito que exige responsabilidade. Que quem desperdiça, paga. Que quem poupa, merece incentivo. Que não se pode continuar a construir mais um andar, mais um hotel, mais um loteamento, enquanto os cursos de água se escondem, os ribeiros apodrecem e os aquíferos se exaurem.

Ficou a ideia de que cultura não é acessório. Que é muito mais do que entretenimento. Que não serve para entreter os fins-de-semana nem justificar subsídios. Que a cultura é a estrutura de uma cidade. Que mapear o património é uma forma de o proteger, sim, mas também de o narrar. De o transformar num fio condutor entre o que fomos e o que podemos ser. Que há trilhos que contam histórias. Que os muros falam, se os soubermos escutar. E que as veredas são livros abertos por onde ainda se pode caminhar.

Ficou tudo isso.

E ficou, acima de tudo, a recusa. A recusa de continuar a escrever programas eleitorais como quem escreve manuais de detergente. A recusa de tratar os cidadãos como imbecis. A recusa de dizer que não se pode, quando o que não se pode é não fazer nada. Ficou o incómodo de ter ousado. O desconforto de ter dito a verdade. A estranha dignidade de ter proposto, com todas as letras, que as autarquias podem ser mais do que máquinas de alcatrão.

E talvez, talvez um dia, alguém encontre o texto num arquivo velho. Talvez, por engano, o leiam. Talvez, por ironia, percebam que era possível. Que o que parecia utopia era, afinal, só bom senso. Que o que parecia arrogância era apenas exigência. Que o que parecia impraticável era, com vontade e vergonha na cara, perfeitamente exequível.

E nesse dia, se chegar, talvez se perceba que a política local, essa que hoje rasteja entre o favor e a omissão, pode voltar a ser política, com todas as letras, com todos os riscos, com todos os danos.

Até lá, que fique o texto, como quem deixa um fósforo aceso num túnel.


https://www.docdroid.net/qHl07r3/plataforma-liberal-autarquica-madeira-2021-pdf


Maio 2025

Nuno Morna



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