"Quem não tem dente do siso não tem juízo",

Aos sessenta e quatro anos nasce-me um dente do siso.

Um dente. Do siso.

Como quem entra atrasado no velório, tropeçando no tapete, pedindo desculpa aos gritos, e vem sentar-se ao meu lado com o descaramento dos que nunca foram convidados, mas aparecem sempre nas fotografias.

Sessenta e quatro anos. Já não tenho paciência para surpresas. Muito menos para surpresas dentárias.

Sinto-o lá atrás, no fundo do fundo da boca, como um pensamento que me envergonha, como uma recordação que não pedi, como a carta do banco a lembrar-me uma dívida. A gengiva lateja-me como o coração dos que se apaixonam, mas isto não é amor, é calcário biológico a forçar caminho por entre nervos gastos, tecidos já cansados de ser corpo. Um dente. A fazer-me companhia. Como se me faltasse mais qualquer coisa. Como se eu fosse inacabado. Como se a minha boca fosse um país em obras.

Este dente não nasceu. Apareceu.

Como as notícias más. Como os velhos conhecidos que me reconhecem na rua e chamam-me por um nome que já não uso.

Levantou-se de dentro de mim como uma lembrança de infância com cheiro a halitose.

E dói-me. Não como as dores que se dizem às pessoas, mas como as dores que se escondem debaixo do travesseiro, enroladas em fralda de hospital.

Penso: o que queres de mim, dente?

E o dente não responde, claro.

Limita-se a estar.

A ocupar-me a boca, como há coisas que nos ocupam a vida inteira e nunca lhes encontramos utilidade.

Dizem que é o dente da sabedoria. Pois que fique sabendo que chegou tarde. Que já me cansei de ser sábio, que a sabedoria pesa-me nos ombros como um sobretudo molhado. Que queria antes um dente da inconsciência. Ou da leveza. Ou, se possível, um que mastigasse melhor as coisas que me custam engolir.

Este dente é uma provocação.

Uma irreverência da carne.

Como um filho que me nasce aos sessenta e quatro anos e em vez de chorar morde.

Como se o corpo quisesse lembrar-me que ainda há tempo.

Para quê, não sei. Mas há tempo.

E isso, confesso, incomoda-me mais do que o dente.

Porque eu pensava já ter fechado as fábricas, selado os portões, apagado as luzes da oficina. E afinal ainda há maquinaria a funcionar cá dentro, pequenas rebeliões de osso e cartilagem a insurgirem-se contra a ordem estabelecida da velhice.

É talvez isso.

O corpo como um velho anarquista.

Que planta dentes onde devia haver sossego.

Que me ensina, tarde demais, que até a boca se revolta.

E eu, sentado na cadeira da cozinha, com um saco de ervilhas congeladas encostado à cara, penso:

- isto sou eu.

Com sessenta e quatro anos.

A ganhar um dente novo.

Como quem ganha um desgosto.

Como quem ganha um poema.

Como quem ganha uma última oportunidade de se espantar.

Quer que eu a arranque? Não.

Deixem-na estar.

Quero ver até onde vai.

Maio 2025

Nuno Morna



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