A Autonomia Tropical.

[com palavras da ilha e aquele modo de dizer que é mais ritmo do que raciocínio]

A minha mãe dizia, quando as tardes caíam moles sobre o Funchal e os cães ladram sem saber porquê e o vento cheirava a maresia, dizia que esta terra não é bem Portugal, é mais qualquer coisa entre o mar e o monte, entre a rama das bananeiras e o som dos búzios ao longe, quando alguém morre ou nasce, que é quando se ouve mais o mar e os homens se calam como se soubessem que a vida é pouca e custa. E talvez por isso esta ideia da Autonomia Tropical, que me entrou pelos olhos dentro como o sol pelos tapa-sóis da casa velha, faça sentido. Mais do que sentido, faça sangue, faça memória, faça casa comum.

Não nasceu em gabinete, esta ideia. Não saiu das bocas redondas dos senhores dos partidos que falam da Madeira como quem fala de um sobrinho maniento e exótico. Nasceu cá, da terra, da pedra que escorrega com a chuva, das palavras que só se dizem aqui, do cheiro a cana a ferver nos engenhos e das manhãs em que as mães se levantam para fazer broas e rezar pelos filhos emigrados. A Madeira, queiram ou não, não é um apêndice, um apêndice é coisa que se tira, a Madeira é entranha, é bucho quente no fundo da barriga, é ventre e não verruma.

E então a Autonomia Tropical começa assim: com o dizer basta. Basta de sermos tratadas como coisa de somenos, basta de nos mandarem leis feitas por quem nunca desceu uma vereda arrimada, basta de confundir ilha com brinquedo.

O primeiro passo? Mandar em nós. Não é pedir favor. É direito. Direito de fazer as nossas leis como se faz o milho quente, devagar, com colher de pau na mão e os olhos na panela para não deixar queimar. Mandar nas casas, nas escolas, nas levadas, nas aprantas. Mandar com o cuidado de quem sabe que aqui as coisas, quando se estragam, demoram a sarar.

Depois, pensar a economia como quem pensa uma horta: com sabedoria e sem pressa. Não somos parque de diversões para turistas abobados. Não somos galucho de subsídios. Podemos ser coisa séria, centro de ciência, terra de invenção, ponte entre o Veleiro Velho da Europa e os ventos quentes de África. Um dia até podemos ter um banco nosso, com nome nosso, feito para emprestar a quem quer plantar futuro.

E a natureza, essa, que não é paisagem de postal, mas sustento, pulmão, escudo. A floresta, a água, o vento, o mar, porque não há Autonomia sem terra. Que se faça lei da terra como se faz testamento: com verdade e com medo de errar. Um tempo novo em que se possa dizer, como se diz de um filho, que se cuida e se deixa crescer.

Depois a cultura. A nossa maneira de falar, que Lisboa torce o nariz e chama erro. A nossa maneira de calar, que é mais feita de olhares do que de frases. Os nomes das coisas: da boganga ao bambote, da achada ao bicho-de-sete-cabeças, tudo isso é país. Um país dentro do país. Com charambas, com bonecas de massa, com a alma das lapinhas que resistem ao tempo como as pedras das levadas resistem ao musgo.

E, por fim, o poder, esse a que devíamos chamar outra coisa, talvez “responsa”, talvez “encargo”. Que descesse das varandas do Palácio do Governo para os becos onde as pessoas vivem. Que fosse mais vizinhado do que governo. Que deixasse de ser coisa que se teme e passasse a ser coisa que se usa, como a enxada ou o avental da avó.

No papel, isto implica mexer onde custa. Rever leis. Fazer novas. Como quem diz: estamos cá, somos ilhéus e não pedimos licença para o ser.

Em 2040, se ainda houver mundo, talvez sejamos mais do que bolo do caco e poncha. Talvez sejamos exemplo. Talvez se diga da Madeira o que se diz dos que envelhecem com dignidade: que foi difícil, mas valeu a pena. Porque a Autonomia Tropical não é um capricho. É um remédio. Um remédio feito de gente, palavra e levada, uma maneira de tratar esta ilha como se trata uma ferida: com cuidado, com tempo, com amor, mesmo quando não se diz.

E quem não percebe isto, é porque nunca subiu ao Pico Ruivo antes do sol nascer, nunca ouviu um braguinha tangido por mão sabedora, nunca viu uma mãe chorar no aeroporto por um filho que foi e não voltou.

Abril 2025

Nuno Morna



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