A cidade que não existe e que, se existisse, seria esta... mas não é.

O mundo, este mundo onde andamos, tropeçando um no outro nos corredores dos supermercados, este mundo de plástico e de promessas com prazo, de homens gordos a discursar em púlpitos e a prometer justiça e equidade e democracia, como se tudo isso fosse possível dentro do intestino grosso da história, este mundo não vale nada. Nem uma sandes de queijo. Nem sequer uma daquelas sandes frias com manteiga e fiambre plastificado que se compram nas áreas de serviço entre Lisboa e o Algarve. E, no entanto, há mil anos, ou mais, um homem sentou-se, escreveu um livro, talvez com uma pena e um candeeiro de azeite, escreveu um livro sobre uma cidade. Não a cidade dele, claro, mas uma cidade como deveria ser. E o que ele escreveu, o que ele pensou, continua ali, sem ferrugem, à espera que alguém o leve a sério.

O homem chamava-se Alfarabi, que é nome de filósofo que se preze. Era árabe, ou turco, ou persa, ou tudo isso ao mesmo tempo, e queria perceber como se podia viver decentemente. Não viver como quem sobrevive, mas viver como quem encontra sentido. Escreveu então A Cidade Virtuosa, que é talvez o tratado político mais melancólico de todos os tratados políticos porque nos mostra aquilo que poderíamos ter sido e não fomos, aquilo que poderíamos ser e não somos, aquilo que não seremos nunca. E é por isso que nos comove.

Na cidade dele, havia um governante. Um só. Mas não desses que se pintam nas paredes com “slogans” idiotas e sorrisos comprados. Um homem verdadeiro. Um homem que sabia. Que pensava. Que não precisava de assessores nem de teleponto. Um homem que lia Platão de manhã, Aristóteles à tarde, e que à noite se deitava com a consciência limpa, talvez ouvindo música dos astros ou o som dos próprios pensamentos. Um homem que conduzia os outros para a felicidade. Mas a felicidade mesmo, a autêntica, não a felicidade da Black Friday ou dos discursos de vitória. A felicidade como culminação da vida pensada.

E esse homem, dizia Alfarabi, devia ser filósofo. E profeta. E sábio. Devia saber mandar, mas também devia saber calar-se. Devia conhecer a verdade e ser capaz de dizê-la sem a estragar. Era uma figura impossível, claro, como todas as figuras necessárias.

Depois vinha a cidade. Não uma cidade qualquer. Uma cidade como um corpo. O coração era o governante. Os braços, os soldados. O estômago, os agricultores. E tudo isto a funcionar em harmonia, como se a política fosse um organismo e não uma multidão de gangrenas. E mesmo assim, mesmo com esta imagem tão limpa, tão impossível de ser, ele não cedia à ilusão. Sabia que a maior parte das cidades não eram virtuosas. Eram ignorantes, ou pervertidas, ou errantes, ou apenas más. Cidades onde se vivia como se mata. Cidades como as nossas.

Mas o que Alfarabi tinha de mais extraordinário era isto: não separava a religião da razão. Não as punha uma contra a outra como dois cães raivosos. A religião era o que o povo precisava para entender o que a filosofia descobria. A religião era uma forma de contar histórias verdadeiras a quem não sabia ler. Um modo de não deixar ninguém de fora. Uma generosidade. Uma forma de amor.

E talvez por isso o seu livro pareça hoje tão deslocado. Porque vivemos numa época sem generosidade. Onde a política é uma sucessão de números e frases soltas e declarações à imprensa. Onde os líderes são bonecos de cera e os partidos uma feira de vaidades. Onde tudo o que se pensa é imediatamente suspeito e tudo o que se sente é imediatamente mercantilizado. Vivemos num tempo em que a ideia de uma cidade virtuosa provoca gargalhadas. E continua a haver em nós uma saudade do que nunca tivemos. Um desejo vago de que as coisas sejam outras. De que o mundo seja outra coisa que não este amontoado de ruído e engano.

A verdade é que Alfarabi exigia demasiado de nós. Queria que lêssemos. Que pensássemos. Que educássemos os nossos filhos não para serem engenheiros ou influencers, mas para serem bons. Para serem sábios. Para saberem viver. A escola, para ele, não era uma fábrica de currículos. Era um lugar de formação da alma. E isso, hoje, parece uma anedota.

Mas talvez, lá muito no fundo, ele ainda nos diga alguma coisa. Talvez o seu livro seja uma espécie de espelho. E o que ele nos mostra não é o que somos. É o que não somos. E talvez seja por isso que dói. Porque não há nada mais cruel do que um espelho honesto. Não há nada mais insuportável do que a verdade dita com bondade.

E por isso A Cidade Virtuosa de Alfarabi não é uma utopia. É uma elegia. Um epitáfio escrito antes da morte. Um aviso de que ainda é possível. Mas que, se não o for, não é culpa dele. É culpa nossa. Porque a cidade está aí. Escondida em cada livro lido, em cada acto justo, em cada silêncio pensante. Está aí. Só não a vemos. Só não a queremos ver.

Abril 2025

Nuno Morna

[para quem tiver interesse em ler o livro, deixo aqui o link para descarga da Fundação Caloust Gulbenkian: https://gulbenkian.pt/publications/a-cidade-virtuosa/ ]




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