A Coragem de Recentrar: o único caminho da Iniciativa Liberal.
in DN Madeira, 2 de junho 2026
Rui Rocha foi digno.
Num país onde os políticos se
agarram ao poder como se fosse herança de família, teve a lucidez de sair sem
drama nem teatrinhos, apenas com a noção clara de que os resultados, ainda que
não desastrosos, ficaram aquém do desejado. Percebeu o que poucos têm coragem
de admitir: que entre o “não correu mal” e o “correu bem” há um desfiladeiro
onde morrem os projectos que perdem o momento.
Soube ver que o país mudou, mudou o
tom, a urgência, o discurso, e que muito do que constava da sua moção deixou de
fazer sentido. Saiu por decência, por clareza, por respeito ao que aí vem. E é
esse gesto, seco e raro, que o distingue. Ninguém o empurrou, ninguém o
encostou. Foi ele que percebeu que o tempo tinha virado, e teve a coragem,
pouco comum entre nós, de não fazer de conta que tudo podia continuar como
estava.
Agora o partido precisa de se
reencontrar. Não com malabarismos tácticos ou “slogans” ocasionalmente
libertários, mas com as ideias fundadoras: a liberdade política contra o
autoritarismo, a liberdade económica contra o estatismo gorduroso, e a
liberdade social contra os moralismos que se disfarçam de virtude.
Ou a Iniciativa Liberal volta a ser incómoda e necessária, ou acabará decorativa e irrelevante.
Estamos errados. Estamos errados
como quem toma a direcção contrária com a certeza instintiva, imbecil e
automática de que está certo. Como quem entra num quarto escuro sem perguntar
se alguém lá está. Como quem tropeça nos próprios pés por ter tentado imitar o
passo do outro. E o pior não é estarmos errados. O pior é estarmos errados
convencidos de que estamos certos. O pior é essa vaidade triste de quem copia
os temas dos outros com a convicção hipócrita de que são nossos, só porque os
pronunciamos com um sotaque diferente, porque lhes mudámos o verbo e o adereço.
Estamos errados porque confundimos táctica com propósito, e oportunismo com
estratégia. Porque trocámos os nossos temas por uma colecção de frases feitas
pescadas das redes sociais, dos jornais que ninguém lê e das modas do momento,
convencidos de que é nisso que consiste a política: numa dança de espelhos onde
o que importa não é ver, mas parecer.
O que precisávamos, o que
verdadeiramente precisávamos, era de silêncio. Um silêncio longo e
desconfortável, como o que se faz numa sala de velório antes que alguém diga a
primeira banalidade. Precisávamos de olhar para os nossos temas, os temas que
sempre recusaram a gritaria, a pose e a histeria, os temas discretos,
exigentes, incómodos, e perceber que são eles, e não os dos outros, que têm a
capacidade de mudar o país. Não é falando como os populistas que se combate o
populismo. Não é reproduzindo a lógica dos velhos partidos que se rompe com o
sistema. E, muito menos, é fingindo uma revolução que se alcança a reforma.
Porque entre um reformista e um
revolucionário vai mais do que uma linha ideológica. Vai um mundo. Vai um mundo
de método, de ética, de substância. O revolucionário quer destruir para
recomeçar, mas nunca sabe com o quê. É um incendiário entusiasmado, um aprendiz
de ditador, um piromaníaco com discursos de libertação. O reformista, esse tipo
melancólico e paciente, sabe que a realidade não muda por decreto, nem por
slogans. Sabe que a mudança é lenta, é suja, é frustrante, mas possível. Que
exige tempo, inteligência e, sobretudo, resistência à tentação do atalho.
E é por isso que estamos errados.
Porque deixámos de querer convencer para querer deslumbrar. Porque abandonámos
a política como ofício para nos tornarmos actores num espectáculo onde a
verdade é irrelevante e o espectáculo é tudo. E o resultado é este: perdemo-nos.
Perdemos a voz. Perdemos a direcção. Perdemos, até, a vergonha.
O futuro, esse fantasma que todos
invocam e quase ninguém quer realmente enfrentar, está no centro. Não o centro
confortável e anestesiado das coligações de conveniência e dos compromissos
ambíguos. Falo do centro autêntico, exigente, corajoso, que obriga a pensar, a
medir, a construir. O centro, que é o único espaço onde as três liberdades podem
coabitar sem se anular: a liberdade política, a liberdade económica e a
liberdade social. É o único caminho que não nos leva ao abismo.
Como?
Com liberdade política. Mas
liberdade política verdadeira, não esse simulacro rotineiro de eleições de
tempos a tempos em que se escolhe entre rostos iguais com “slogans” iguais pagos
pelas mesmas agências de comunicação. Liberdade política é garantir que o poder
pertence aos cidadãos e não às estruturas partidárias. Que se vota em pessoas,
com nome, com passado, com responsabilidade, não em máquinas burocráticas
protegidas por listas fechadas. Círculos uninominais, voto preferencial,
escrutínio permanente. E justiça independente, não na forma, mas no conteúdo.
Uma justiça que não funcione à velocidade dos ciclos políticos, que não se
curve aos interesses ou ao medo.
Com liberdade económica. Que não é a
libertinagem dos mais fortes, mas a remoção activa dos obstáculos que impedem
os mais fracos de tentar. Um Estado que se ocupe de arbitrar, de regular com
inteligência, de garantir um campo nivelado, e não de ser ele próprio o
principal actor económico, o maior patrão, o maior investidor, o maior cobrador
de impostos e, ironicamente, o maior caloteiro. Liberdade económica é acabar
com a teia densa de licenças, de autorizações, de taxas e contribuições que
tornam qualquer tentativa de iniciativa privada um percurso de humilhação e de
medo. É baixar impostos, sim, mas mais do que isso, é acabar com a lógica de
excepção permanente, dos benefícios fiscais, dos favores, das rendas
garantidas, das empresas amigas do regime.
E com liberdade social. Essa que
toda a gente celebra no abstracto mas que ninguém tem coragem de concretizar.
Liberdade social é o direito de cada um viver como quiser, sem medo, sem
tutela, sem estigma. É olhar para a escola pública e ver nela um instrumento de
emancipação, e não uma fábrica de conformidade. É ter políticas sociais que
sirvam para dar autonomia, e não dependência. É ver nos pobres cidadãos com
futuro, e não instrumentos de chantagem eleitoral. É promover a dignidade do
trabalho, mesmo o mais humilde, contra a tentação mórbida de transformar toda a
vida em estatística de carência.
Estamos errados, sim. Porque
quisemos ser outra coisa. Porque nos envergonhámos do que éramos. Porque
achámos que a verdade precisava de maquilhagem. E, no fim, ficámos com um
disfarce gasto e um discurso vazio. Mas ainda não é tarde. Ainda podemos corrigir.
Se voltarmos a ouvir. Se voltarmos a pensar. Se voltarmos a acreditar que vale
a pena ser sério num país que se habituou à farsa.
Se voltarmos, no fundo, a ser nós.
Sem medo. Sem máscara. Sem imitação. Porque não é adoptando os temas dos outros
que nos tornamos relevantes. É recuperando os nossos, e fazendo deles,
finalmente, o verdadeiro instrumento da tão necessária disrupção reformista.
Junho 2025
Nuno Morna

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