A Empresa do Fim do Mundo.
No princípio, antes do verbo, antes do número de contribuinte, antes do capital social, antes do recibo verde, havia a ideia, não a ideia limpa dos livros de gestão, não a que cheira a manual e a tinta de impressora a jacto, mas a ideia como um verme a mastigar-lhe o cérebro por dentro, a picar-lhe os olhos de madrugada enquanto ele, deitado de lado, via a mancha da humidade no tecto a formar mapas do mundo onde todas as ilhas se pareciam com a Madeira.
Vasco, ou Vasto como o portal o baptizou, filho de mãe de contabilidade improvisada e pai ausente como o Estado, decidiu, numa tarde quente de Junho, criar uma empresa. A primeira só dele. Não de amigos, sócios, conhecidos da faculdade que agora vendem cripto ou veganismo ou workshops de “comunicação assertiva para líderes empáticos”. Não. Uma coisa dele. Por ele. Contra tudo. Ou talvez por nada. Porque não sabia fazer outra coisa senão começar.
Foi num 23 de Junho, o sol uma faca de manteiga esquecida no céu, os pássaros a gritarem coisas que não se entendiam, e a vizinha do segundo andar a dizer-lhe que não era bom sinal fundar nada nesse dia, que S. João era ciumento, e que os santos gostam de silêncio, não de negócios. Mas ele, como sempre, não ouviu. Ouviu o que queria: os anúncios do Simplex, os “podcasts” do optimismo digital, a promessa de que “hoje em dia tudo se faz num clique”.
Acreditava. Ainda acreditava. Como se acredita em milagres ou nas cartas da mãe.
Entrou no portal. Empresa 2.0. Nome de nave espacial ou de feitiço mal dito. E ali ficou. A tentar registar-se, o número de contribuinte recusado, os campos a apagarem-se sozinhos, o site a cuspir-lhe mensagens de erro como se fosse o Diabo a rir-se numa cave. Abriu um “ticket de suporte”. Esperou. Outro. Esperou mais. Ligou para o número de atendimento, música de elevador e vozes mecânicas com sotaque de nenhures, promessas que a “equipa técnica” estava “a analisar o caso”.
Dias. Noites. Semanas. A tentar. A refazer. A submeter. E os erros a multiplicarem-se como baratas num armazém abandonado.
Acabou por ir a Lisboa. Apanhou o avião das 6:20, o céu ainda a sangrar escuro atrás das nuvens. Levava consigo uma pasta azul com tudo, certidões, comprovativos, intenções. A pasta azul era mais sólida do que ele. Na Repartição, o funcionário sorriu com o cansaço de quem já morreu por dentro vinte vezes.
- O senhor quer abrir uma empresa por quotas através do portal?
- Quero.
-Isso não funciona. Nunca funcionou.
- Mas disseram que…
- Dizem muita coisa, meu senhor. Também dizem que os golfinhos ainda cantam às estrelas.
E riu-se. Um riso mole, como se saísse de um estômago doente.
Voltou à fila. Outra fila. Depois uma terceira. O prédio era um labirinto de corredores suados, gente a cheirar a suor e desesperança, passos lentos, vozes magoadas. E filas, filas e mais filas. Lá dentro, os funcionários tinham olhos opacos como vidro fosco, dedos que carregavam nos teclados como se estivessem a martelar caixões. Um deles olhou a certidão de Vasco e disse:
- Isto não existe.
- Como não existe? Está aqui.
- Sim, mas não devia existir. Portanto, não existe.
Era isto. Uma lógica tão antiga como a pedra. Tão estúpida como o frio nas manhãs de inverno. Tão portuguesa como os pastéis de nata e o bolo do caco.
Vasco, ou Vasto como o sistema o chamava, foi-se gastando. O dinheiro a escorrer como se tivesse um buraco na carteira, ou talvez na alma. Mais de 540 euros em taxas, papelada, deslocações, cópias autenticadas, selos, entregas urgentes que nunca chegavam. E ele ali. Sempre ali. A acreditar. A persistir. Porque não sabia desistir. Porque o sonho era maior que a humilhação. Ou porque estava viciado no sofrimento.
A empresa, por fim, foi registada. Não com o nome que ele queria. Queria chamá-la “Atlântida Lda.”, nome poético, quase místico. Mas estava já registado, usado por uma firma obscura de reparação de scooters em Santo Tirso. Ficou “Atlantedita, Unipessoal”. Nome de fungo ou de ave extinta.
Tudo isto durou quarenta e cinco dias. Quarenta e cinco dias como uma gestação maldita. Quarenta e cinco dias para criar algo que, dizia o Estado, podia ser feito em dois. Mentira. Sempre mentira. O Estado é uma novela sem fim com actores maus e figurantes desesperados.
E depois veio o banco. O banco.
O banco era uma outra floresta. Um novo pântano. Um lugar onde os gerentes estavam sempre “em reunião”, os balcões fechavam “por falta de recursos”, e os documentos exigidos mudavam conforme a direcção do vento. Um pediu uma cópia autenticada do registo criminal do avô materno. Outro queria prova de que a empresa ia mesmo existir. Outro pediu o número de utente do sistema de saúde.
Acabou por abrir conta na Revolut. Aplicação estrangeira. Interface limpa. Sem perguntas. Sem caras. Sem julgamentos. Como um amante que não fala. Tudo feito em minutos. Vasco chorou. Chorou a sério. Chorou como quem acaba de fugir da guerra.
Mas ainda não tinha acabado. Faltava o toque final. O acesso ao Portal das Finanças. As credenciais. O código. A entrada na arca sagrada onde se emite facturas e se declara rendimentos que ainda não existem.
Veio pelo correio. Um envelope neutro. Selado. Em papel. Em 2023. Sim. Em papel.
Numa ilha onde a internet falha sempre que chove. Um envelope entregue por um carteiro que parecia saído de uma fotografia de 1972. Um carteiro que trazia no bolso um rádio a pilhas e no olhar a certeza de que o tempo não passava, apenas girava em círculos como os galos tontos dos galinheiros.
E assim nasceu a empresa. Ou melhor: assim nasceu a doença. Porque ter uma empresa em Portugal é carregar um corpo morto às costas e fingir que respira. É andar em contramão na auto-estrada da estupidez. É acreditar que a inovação é possível num país onde ainda se carimba tudo com tinta seca e se pede às pessoas que assinem três vias. É ver o Estado a legislar com uma mão e a não cumprir com a outra.
Na última noite do processo, Vasco foi até à promenade. Subiu à beira de uma falésia. Sentou-se. O mar ali em baixo, grosso, denso, cheio de vozes caladas. E ele disse para ninguém:
- Fiz uma empresa.
E uma voz antiga respondeu, vinda do mato ou do mar ou da memória:
- Fizeste mal. Agora fundaste o inferno.
E ele riu. Riu muito. Como só riem os que já não têm nada a perder.
Maio 2025
Nuno Morna
MUITO BOM! Abraço
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