A Ilha Que Espera Pela Cura e Morre Calada.

[109.753 razões para desconfiar de quem governa e nenhuma desculpa que resista à dor de quem espera]

O JPP, a muito custo, como sempre que se quer saber a verdade nesta terra, recorreu à justiça para que se soubessem os números das listas de espera na Saúde. O que o documento mostra, e o que oculta, e o que diz entre dentes, como quem se confessa com vergonha, como quem sussurra a verdade antes de a negar, é que vivemos numa ilha doente, uma ilha que treme das pernas como um velho mal tratado, uma ilha com o sangue espesso de tanto esperar, com os olhos baços de tanto ser ignorada, uma ilha que já nem reclama, que já só respira por reflexo, como quem se habituou à asma crónica de um sistema em colapso. Os números estão lá, frios, insensíveis, exactos como lâminas de bisturi: 109.753 actos clínicos em lista de espera, 109.753 pequenos infernos em pausa, 109.753 formas de sofrimento numeradas, arquivadas, empilhadas numa gaveta qualquer do edifício cor-de-rosa da Secretaria da Saúde, esse mausoléu administrativo onde já não se ouvem doentes, só impressoras.

Consultas, cirurgias, exames. Gente que aguarda, que aguenta, que adoece à espera que o sistema se lembre que existe. E o sistema não se lembra. O sistema já não é feito de médicos nem de enfermeiras, mas de quadros intermédios com nomes longos e responsabilidades curtas, de gabinetes abafados onde se decide que uma TAC pode esperar seis meses, que uma operação à anca pode ser adiada até que a anca se parta sozinha. O sistema tornou-se um organismo auto-imune, atacando precisamente aqueles que devia proteger. O que aqui se mostra não é um erro, é uma escolha.

O Governo, e aqui o nome “Governo” deve ser lido como uma entidade abstracta, uma neblina de rostos repetidos, de declarações recicladas, de vontades cansadas, não revelou os dados. Ocultou-os. Escondeu-os. Guardou-os como se fossem uma nódoa, como se fossem uma falha estrutural da sua narrativa de sucesso, como se as pessoas em lista de espera fossem manchas num boletim de campanha. Foi preciso ir a tribunal. A tribunal, repita-se. Como se estivéssemos em tempos de censura, como se a saúde fosse matéria de segredo de Estado. E talvez seja. Talvez na Madeira, saber quantos esperam seja mais perigoso do que saber quem manda. Porque quem manda não quer que se saiba que não manda em nada.

E os que esperam? Esperam em silêncio. Esperam porque não têm alternativa. Esperam porque a espera virou condição existencial. Esperam por uma consulta como se esperava pelo correio vindo do continente, em tempos antigos: com ansiedade, com esperança, com um vazio no estômago que não passa. 47.707 esperam por uma consulta de especialidade. E enquanto esperam, os sintomas agravam-se, os diagnósticos atrasam-se, os medos aumentam. Uns começam a automedicar-se. Outros desistem. Há quem reze. Há quem chore. Há quem se limite a sentar, todos os dias, à mesma hora, junto ao telefone, como se fosse um altar. Não para falar com Deus, para falar com o hospital.

17.328 esperam por cirurgia. Dezassete mil corpos que necessitam de corte, de costura, de recuperação. Dezassete mil pessoas que vivem no limiar entre a doença e a desistência. Alguns já não sabem se querem mesmo ser operados. A dor, quando dura anos, torna-se uma companhia. Há quem aprenda a dormir com ela, quem se habitue a caminhar torcido, a viver a metade. São vidas amputadas sem bisturi.

Depois vêm os exames. 30.947, no total. Quase trinta e uma mil almas em suspensão diagnóstica. Gente que quer saber. Que precisa de saber. Que teme saber. Gente que desconfia de um caroço, de uma dor no peito, de uma vista turva. E que é deixada a adivinhar. E adivinhar, no mundo da medicina, é o princípio do fim. 12.379 esperam por uma ecografia, um exame banal, rápido, que noutros países se faz ao fim de uma semana. Aqui, pode demorar meio ano. Ou um ano inteiro. 6.807 esperam por um TAC ao cérebro. Que talvez explique porque é que ninguém, no Governo, parece ter cérebro para lidar com isto.

As especialidades mais saturadas são as do corpo velho, do corpo cansado, do corpo que se arrasta. Ortopedia: 8.525. Medicina física e reabilitação: 7.569. Oftalmologia: 6.135. É como se o arquipélago tivesse sido projectado para castigar os que envelhecem. E envelhecer, na Madeira, é um acto de resistência. Há idosos que tropeçam nas suas próprias pernas e não têm a quem recorrer. Há quem veja tudo embaciado e não tenha consulta marcada nos próximos dois anos. A ilha, para muitos, já não tem contornos nítidos. A vida é uma sombra.

E o Governo? O Governo sorri. O Governo organiza conferências de imprensa. Inaugura salas de espera. Apresenta planos com títulos em inglês. Anuncia investimentos que não se vêem. Diz que contratou, que melhorou, que reformou. E o doente continua em casa. Deitado. A tossir. A perder peso. A esquecer-se do que era viver sem dor. O Governo governa como quem encena. Os jornalistas assentem, os partidos abanam a cabeça. E o povo aprende a calar.

Há ainda 3.913 actos de ambulatório em espera. O que são? Pequenas intervenções. Coisas simples. Pequenos gestos que, feitos a tempo, evitam grandes tragédias. Mas não são feitos. Porque o sistema não tem tempo. Ou não tem vontade. Ou não tem capacidade. E o tempo, na saúde, é um luxo que se paga caro. Um atraso hoje, uma urgência amanhã. Uma negligência agora, uma morte depois.

No fim, tudo isto é mais do que um problema de listas de espera. É um retrato moral. Um retrato da indiferença. Da indiferença transformada em política. Da incompetência transformada em rotina. Da gestão transformada em negação. A lista de espera não é apenas uma estatística: é a biografia do regime. A sua fotografia mais honesta. Porque ali não há filtros. Não há maquilhagem. Só gente esquecida, em fila invisível, como se a vida tivesse sido adiada para sempre. Como se a dor não fosse mais do que uma questão de agenda. Como se a saúde fosse apenas um detalhe, um pormenor secundário, na manutenção do poder.

Junho 2025

Nuno Morna



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