Aceitar não é render-se.
[com o corpo curvado e as mãos nos bolsos da memória]
Aceitar um resultado eleitoral, mesmo quando nos sabe a vinagre na boca, mesmo quando nos dói como um prego enferrujado entre as costelas, não é o mesmo que baixar as calças à frente de quem ganhou. Há uma diferença, ainda que não se veja logo, entre engolir o sapo e deixá-lo morar no estômago. Aceitar, sim, porque as regras da democracia determinam que assim, seja, porque havia boletins, e urnas, e pessoas a votar, e gente a contar votos com os olhos cansados de tanto ver mentiras. Concordar, não. Que isso, o concordar, vive noutro bairro do cérebro, numa ruela escura onde o coração se esconde e abraça aquilo que somos e o que pensamos.
A democracia, dizem, é feita de vitórias e derrotas, mas esquecem-se de dizer que as vitórias são sempre dos outros, e as derrotas, essas, são sempre nossas. E agora aparecem, saídos de debaixo das pedras, os que se ofendem com a crítica, os que se arrepiam com um “não”, os que não admitem que se diga: isto está mal, isto fede, isto não serve. E são os mesmos, exactamente os mesmos, com a mesma roupa, os mesmos tiques, os mesmos sorrisos cansados, que antes berravam nas ruas, de cartaz na mão e punho no ar, contra governos que lhes sabiam a azedo. Onde é que estavam essas almas cândidas quando o poder era dos outros? Estavam a cuspir-lhe em cima. E agora querem vénias?
Estes beatos da estabilidade, estes santinhos da concordância, esses novos convertidos à liturgia do regime, descobriram subitamente que a democracia é uma relíquia que se deve venerar, desde que seja com eles no altar. Já não admitem a heresia, nem o sarcasmo, nem o insulto educado de quem diz “discordo” com a frieza de um cirurgião. Agora, qualquer palavra fora da missa é pecado, e qualquer dúvida, uma ameaça ao templo. E não se pode duvidar. Não se pode. Nem sequer pensar.
Mas aceitar, aceitar não é calar. Não é pôr-se de joelhos e agradecer o desastre com humildade. Aceitar é apertar os dentes, é morder o próprio orgulho até sangrar, é dizer: ganhaste, sim, mas não me convences. E continuar. Continuar com a indignação como um cão velho que não larga a perna do dono. Continuar com as palavras, com as ideias, com os gestos pequenos que corroem os alicerces dos monumentos. Porque o que vos incomoda não é o protesto: é a persistência. É saberem que há quem continue a pensar.
E é esse continuar, esse murmúrio que não morre, esse incómodo permanente, que mantém a democracia viva. Não o respeito vazio, nem os discursos solenes, nem as palmas no Parlamento. Mas essa gente irritante, essa gente que não se cala, essa gente que vos lembra que aceitar não é render-se. Que vos lembra, no fundo, que ainda não ganharam. Por mais que o digam, por mais que o repitam. Porque há vitórias que sabem a derrota, e derrotas que, vistas de perto, são apenas o princípio de um regresso.
Maio 2025
Nuno Morna

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