David Ricardo: o português que ensinou o mundo a pensar a economia.
[e que Portugal preferiu esquecer]
David Ricardo nasceu em Londres em 1772, no meio daquele nevoeiro espesso que se entranha nos ossos e parece não sair mais, nem com sol, nem com preces, nem com caldos quentes servidos por criadas com aventais encharcados. Se calhar já vinha com ele, o nevoeiro, agarrado aos sapatos do pai, que viera de longe, de um país que o expulsara por ser judeu, por ser diferente, por ter sangue quente e contas certas, vindo talvez de Lisboa ou do Porto, atravessando os mares em navios a cheirar a laranja e a medo, com a alma encolhida no bolso e o nome envolto em silêncio, como se fosse preciso escondê-lo, esse nome, Ricardo, para não ser devorado pela Santa Madre Igreja que tudo purifica, mesmo que seja com fogo.
Cresceu entre corredores escuros e salas de madeira gasta, onde os homens falavam de dinheiro como se fosse uma religião, o dinheiro. Não o dos outros, mas o deles, contado em libras e em cheques, em acções e em dívida, e aprendeu cedo a distinguir o valor das palavras do valor das coisas, e percebeu que nem sempre coincidem. O pai, Abraham, corretor respeitado, ensinou-lhe o que podia antes de o expulsar de casa por apostasia, essa traição íntima que se faz com uma cruz ao peito, como quem renega a herança não por desrespeito, mas por necessidade, como quem muda de sapatos porque os velhos já não servem, apertam, doem, ferem. Foi assim que Ricardo ficou só, com vinte e um anos, a respirar o ar frio da exclusão e a construir, pedra a pedra, uma fortuna à custa da Bolsa, da astúcia, da frieza, sem favores, nem consolos, sem missa nem bênção.
A riqueza não o tornou mole. Pelo contrário, foi o que o libertou. Com ela comprou o tempo para pensar, para escrever, para olhar o mundo com olhos que não desviavam, olhos que viam o essencial e o diziam com uma clareza seca, cirúrgica, sem enfeites. Escreveu os "Princípios da Economia Política e da Tributação", um livro que ainda hoje assusta ministros e directores-gerais, porque lhes arranca o verniz das promessas e mostra o que sobra: cálculo, interesse, poder. Nele, Ricardo fez aquilo que poucos ousam: explicou que a riqueza de uma nação não vem de protecções absurdas nem de patrioteirices, mas da liberdade de trocar, de produzir, de escolher. A sua teoria das vantagens comparativas foi um murro na mesa da complacência imperial. Mostrou que mesmo o país mais fraco, se souber onde é menos fraco, pode triunfar. Que a especialização não é submissão, mas inteligência. E que o comércio, quando é livre, aproxima, não afasta.
Dizia também, e com razão, que o valor das coisas não está nas etiquetas, mas no trabalho que exigem, nos calos, no suor, nas noites mal dormidas. A sua teoria do valor-trabalho, mais tarde engolida e retorcida por Marx como um padre que transforma vinho em sangue e depois nega o milagre, era simples: tudo o que vale, vale porque custou. Nada de rendas imerecidas, nada de lucros sem esforço.
Ricardo não se ficou pelos livros. Entrou no Parlamento, onde os senhores de casaca olhavam para ele como quem olha para um intruso, um recém-chegado que ousava falar-lhes de economia como se não fosse apenas um tema decorativo para conversas de salão. Mas Ricardo não se intimidava. Falava com a mesma precisão com que escrevia. Cortava o palavreado inútil, desmascarava os interesses escondidos, dizia o que tinha de ser dito sem pedir desculpa. E talvez por isso nunca tenha sido popular. Nunca o são os que dizem a verdade.
Morreu em mil oitocentos e vinte e três, com cinquenta e um anos, com metade das coisas por dizer e a outra metade escrita em páginas que poucos lêem hoje, porque o liberalismo que defendia, esse que exige responsabilidade, que rejeita o paternalismo estatal, que acredita no indivíduo mais do que na máquina, está fora de moda. Não encaixa bem nos discursos da ordem nem nas promessas dos salvadores. Ainda assim, sobrevive, como uma semente teimosa debaixo da terra, à espera de uma estação em que se possa voltar a dizer, em voz alta, que o Estado nem sempre sabe melhor, que o proteccionismo é uma doença, que a liberdade custa, mas compensa.
E a sua origem portuguesa? Enterrada no esquecimento, como quase tudo o que nos envergonha por ser grande. Portugal nunca lhe perdoou o sucesso, talvez por nunca ter compreendido as suas ideias. Se tivesse nascido em Lisboa em vez de Londres, teria sido marginalizado, chamado subversivo, vigiado pela polícia política ou pelo confessório. Não teria escrito nada, ou teria escrito escondido. E mesmo assim, mesmo agora, ninguém fala dele. Ninguém o reclama. A pátria que o expulsou cala-se, como sempre se calou, diante daqueles que ousam pensar por si próprios.
David Ricardo foi um estrangeiro desde o início. Um estrangeiro na sua casa, na sua terra, no seu tempo. Um homem que preferiu a solidão à mentira, a clareza ao conforto, a liberdade à protecção. E talvez, no fundo, essa seja a verdadeira definição de liberal: aquele que está disposto a perder tudo menos a lucidez.
Maio 2025
Nuno Morna
PS: quem quiser ler o livro que acima refiro, pode encontrá-lo aqui:
https://gulbenkian.pt/publications/principios-de-economia-politica-e-de-tributacao/

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