Empresas como espelhos embaciados.
[Quatro milhões para se dizer que se fez. Meio cêntimo por dia para calar a vergonha]
O programa CRIEE, disseram com a solenidade de quem anuncia a descoberta do mar ou o nascimento de uma ilha nova ao largo da Ponta de São Lourenço, criou 570 empresas e 959 postos de trabalho desde 2015, e eu a imaginar os homens das fotografias com os papéis na mão e os olhos semicerrados do costume, como se tivessem acabado de inaugurar a liberdade ou pelo menos uma estrada, e por baixo os sorrisos de catálogo institucional que se repetem há tantos anos que parecem já vir colados às caras como aqueles óculos que os velhos não tiram nem para dormir.
Cinco centenas e setenta de empresas, disseram, como se fosse coisa que tivesse peso ou substância, cinquenta e quatro por ano, uma por semana, uma por cada sete dias que passam sem que ninguém se lembre de perguntar o que foi feito das que vieram antes, das outras, das que já não estão, das que nunca chegaram a estar, das que nasceram para morrer no tempo regulamentar e desaparecer em silêncio, como desaparecem os projectos falhados no fundo das gavetas, como desaparecem as promessas feitas ao espelho.
E os empregos, novecentos e cinquenta e nove, números inteiros, redondos, como bolos de aniversário que se cantam, mas não se provam, e que significam uma média de menos de dois trabalhadores por empresa, 1,68 se quisermos fingir exactidão, um número que deve incluir o dono, a mulher do dono, talvez o cunhado, talvez uma pessoa a dias que limpa e atende chamadas, se as houver, e se houver telefone, e se houver chamadas. Empresas que servem para cumprir a tabela e aguentar o tempo necessário antes de fechar a porta, apagar a luz, devolver as chaves e agradecer ao Estado pelo tempo emprestado.
Dizem, sem pestanejar, que cada apoio custou à volta de 7.500 euros, o que dá mais de 4 milhões, 4 milhões e 275 mil euros para sermos mais meticulosos do que eles foram com as contas, e se dividirmos isso pelos dez anos e meio do programa, temos quatrocentos e sete mil por ano, trinta e três mil por mês, mil e cem por dia, domingos incluídos, mesmo nos dias em que não se abre nada, em que tudo está fechado menos o silêncio. E nós, os 250 mil que aqui vivemos, os que andamos pelas ruas sem olhar o céu, os que esperamos que não nos chamem para mais um curso, mais uma medida, mais um papel para assinar, pagamos isso tudo sem saber, meio cêntimo por dia cada um, um imposto disfarçado de esperança, uma esmola que se dá ao regime para que ele continue a fingir que faz alguma coisa, para que continue a governar as nossas ilusões com a delicadeza de quem cuida de doentes incuráveis.
4 milhões gastos em empresas que, na sua maioria, não chegaram a existir senão no papel, nos gráficos, nos discursos, e talvez num ou noutro caderno de apontamentos guardado numa gaveta, escrito com letra nervosa, como quem tem medo de não ser levado a sério. E no fim, o que fica? Uma fotografia no Diário, uma entrevista breve com palavras gordas, um número solto a voar nos corredores do parlamento, e depois o silêncio. O mesmo silêncio de sempre.
Não se pergunta o que produzem. Não se pergunta se vendem. Não se pergunta se continuam abertas. Não se pergunta, sobretudo, se serviram para alguma coisa além de ocupar mais uma linha nos quadros do Instituto de Emprego da Madeira. Fala-se de incentivos com a mesma devoção com que se fala de milagres. Repetem-se palavras como quem reza. E o presidente, esse eterno protagonista da própria biografia, diz que é importante continuar, continuar, continuar, como se continuar fosse um objectivo, como se a repetição garantisse virtude.
Mas o CRIEE não é um programa. É uma maneira de adiar o fim. Um programa que existe para que tudo se mantenha como está, para que a ilha permaneça nesta lentidão ordenada, neste embalo administrativo, neste sono subsidiado. As empresas não são empresas. São artifícios. Os empregos não são empregos. São lugares de espera. E o dinheiro, esse escorre devagar como se escorresse da parede da casa depois de uma noite de chuva.
E nós pagamos. Meio cêntimo por dia. Meio cêntimo de resignação. Meio cêntimo por não termos perguntado. Meio cêntimo por termos aceite o teatro como se fosse realidade. Meio cêntimo por termos preferido a mentira bem dita à verdade malcheirosa. Meio cêntimo, todos os dias, para que eles possam continuar a sorrir nas fotografias. E nós a desaparecer devagar.
Junho 2025
Nuno Morna
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