O Entalamento.
[o futuro chegou como uma maré suja, e o cais ficou entalado no meio do silêncio e da vergonha]
Era uma manhã cinzenta. Uma daquelas manhãs em que o nevoeiro desce devagar sobre o porto como uma cortina húmida e pesada, cobrindo os contornos das coisas e tornando o mundo uma espécie de memória. As gaivotas gritavam sem saber porquê. O barulho dos motores chegava abafado, como se viesse debaixo de água. E o navio, o tal navio de 150 metros, avançava pelo canal estreito como quem entra numa igreja sem fé, empurrado por promessas e conveniências, guiado por gráficos e esperança, sem espaço para dúvidas, sem espaço para mais nada.
Chamava-se Boa Esperança, ironicamente. Nome pintado em branco sujo na proa, letras cansadas como os olhos do piloto que o manobrava, mãos no leme e suor na nuca, a pensar nos limites, nos milímetros, nos centímetros que separavam o sucesso da catástrofe. Era novo, o piloto. Formado em Lisboa, sim senhor, brilhante nos simuladores, rapaz de boas notas e boa família, daqueles que aprendem o mar por ecrã e o vento por descrição. Tinha um pai que conhecia o presidente da APRAM. Tinha um padrinho que falava com o Luís Miguel de Sousa. Tinha um contrato temporário, que podia não ser renovado.
- Vai, vai que dá, disseram-lhe.
E ele foi.
O navio entrou. Virou. O casco roçou o molhe. O raio de giração não chegou. O rebocador gritou. O comandante do porto ergueu-se da cadeira como se isso fosse ajudar. O motor principal deu tudo o que tinha, mas o navio era grande demais para o espaço e a decisão foi pequena demais para a responsabilidade. E ali ficou. Entalado. Como uma vergonha feita ferro.
Silêncio.
Depois, o caos. Gritos no rádio. Sirenes. Homens a correr com capacetes tortos. Um grua a tentar ver por cima do nevoeiro. Jornalistas a caminho com microfones famintos. O presidente da APRAM a chamar “incidente isolado”. O secretário da Economia a falar de “imprevistos operacionais”. A oposição a pedir uma comissão de inquérito. E o Grupo Sousa, sempre o Grupo Sousa, a prometer colaborar em tudo o que fosse preciso, com aquele tom paternal que têm os que já sabem que nada lhes acontecerá.
No meio da confusão, o velho António, que trabalha no cais desde sempre, encostava-se a um pilar e olhava o navio preso como se visse um parente doente. Não disse nada. Nem precisava. Tinha avisado. Disseram-lhe que estava caduco. Que os tempos tinham mudado. Que agora havia tecnologia. Estava reformado, mas ia lá todos os dias. Levava pão com manteiga embrulhado em papel e um caderno de capa preta onde apontava, com letra torta, o que via. Chamavam-lhe o cronista do porto. Já ninguém lia o que ele escrevia, mas ele escrevia na mesma.
- Isto agora já está, não está?, murmurou, virado para um puto novo, rapazito de cara aflita e colete laranja fluorescente.
O grumete não respondeu. Estava a ver o navio. E era como ver uma ferida aberta na ilha.
Nos dias seguintes, vieram os relatórios. Vieram os peritos. Vieram os artigos de opinião. Vieram as desculpas e as justificações. Mas o navio ali ficou. Dez dias. Sem sair. Sem entrar. As operações de carga suspensas. Os prazos desfeitos. A Madeira sem mercadorias. Os supermercados de prateleiras vazias. Os jornais com títulos gordos. A Assembleia a discutir aos gritos. E o povo, como sempre, a pagar.
Falaram em rever os regulamentos. Em abrir novos concursos. Em estudar melhor os limites. Falaram em “lições a tirar”. Mas a verdadeira lição, essa, ninguém a quis aprender.
A lição de que a técnica não se dobra à conveniência.
A lição de que os portos são como a dignidade: uma vez entalada, dificilmente se recompõe.
A lição de que a autonomia sem ética é só mais uma forma de dependência.
A lição de que, quando o mar se revolta, não há parecer que nos salve.
E o velho António, no seu banco, continuava a escrever. Agora com uma caneta nova, oferecida por um jornalista.
- Como vai chamar a ess entrada que acabou de escrever?, perguntou-lhe uma rapariga da televisão.
Ele sorriu, de olhos secos e voz cansada.
- “O Entalamento”. Como a Madeira inteira.
Junho 2025
Nuno Morna
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