O Estado Contra a Habitação.
[Como o Governo matou o mercado, espantou os construtores e condenou uma geração à casa dos pais]
O problema da habitação, como todos os outros problemas deste país fatigado, não se resolve com comunicados de imprensa, nem com ministros ou secretários com cara de administrativo ao fim de um dia de trabalho, nem com relatórios de Bruxelas impressos em papel grosso que dá estatuto às asneiras. O problema da habitação em Portugal, como o do ensino, da saúde ou da justiça, é um problema de realidade. E contra a realidade não há decreto que valha. O que falta, desde logo, é uma coisa que nem sempre se consegue com leis: casas. Casas mesmo. Com paredes, telhado, canalização, cozinha, uma varanda com molas coloridas a segurar roupa a secar e um espelho embaciado na casa de banho. O resto é retórica.
E por que é que não há casas? Porque não se constrói. E por que não se constrói? Porque o Estado não deixa. Ou melhor: deixa, mas dificulta. Ou melhor ainda: finge que facilita enquanto engorda taxas, impõe regras absurdas, inventa formulários, exige pareceres de técnicos que ninguém conhece, carimbos de departamentos que ninguém encontra e digitalizações em duplicado de documentos que ninguém lê. Construir em Portugal é como pedir autorização ao Estado para sonhar, leva anos e, no fim, ainda se paga imposto sobre o sonho. É esta a verdade que ninguém quer dizer. Preferem falar de “políticas públicas”, de “visões estratégicas”, de “ambientes regulatórios estáveis”. Palavras ociosas, sem corpo, ditas por homens ocos.
A ideia agora é limitar rendas. Pôr um tecto, uma fita métrica à volta do preço. Como se o mercado fosse um aquário e as pessoas peixinhos a quem se dá ração por medida. Sempre que há uma crise, a resposta é a mesma: controlar, limitar, regular, como se fosse possível obrigar a realidade a comportar-se. Controlar as rendas não resolve o problema. Adia-o. Torna-o invisível por uns meses até voltar com mais força, como uma infecção mal curada. O que acontece, o que já aconteceu em todos os países onde isto se tentou, é simples: os senhorios fogem. Os que têm imóveis não arrendam. Os que pensam em investir desistem. Os que já estão no mercado tiram as casas do mercado. O parque habitacional encolhe. E o que sobra são casas degradadas, apartamentos húmidos, interiores com azulejos descascados e cheiro a mofo.
Depois há o bicho-papão da moda: o alojamento local. Dizem que é ele o culpado da crise. Que está a expulsar os residentes, a sugar os bairros, a transformar Lisboa e o Porto em parques temáticos para alemães e franceses reformados com pensões de ouro. E talvez o seja, um bocadinho, como tudo é culpado um bocadinho. Mas o alojamento local não apareceu por magia. Apareceu porque o arrendamento tradicional foi sendo asfixiado até morrer. Morreu às mãos do Estado: contratos desequilibrados, inquilinos protegidos mesmo quando não pagam, impostos em catadupa, um labirinto legal onde só sobrevive quem tem um advogado de estimação. Quando se mata o mercado formal, o informal cresce. Quando se dificulta o arrendamento habitacional, cresce o turístico. É biologia simples. Mas esta gente que nos governa não estudou biologia. E tenho muito as dúvidas se sequer estudou Ciência Política. E depois admiram-se.
A solução de Bruxelas, como sempre, é ideológica. Esconde-se sob o verniz técnico, mas é uma escolha política: mais regulação, mais controlo, mais Estado, como se o Estado não fosse já o maior dono de nada e o pior gestor de tudo. E por cá, os governos obedecem. Abanam a cabeça como empregados de balcão quando o gerente entra. Aplicam as directivas, replicam as recomendações, engolem as palavras difíceis sem mastigar. E ninguém pergunta o essencial: por que não se constrói? Por que é que os preços sobem? Por que é que os jovens continuam em casa dos pais até aos trinta e cinco, agarrados a mestrados que não dão emprego e a rendas que não se podem pagar? Porque o Estado lhes cortou as pernas. Porque desconfia de quem quer fazer. Porque trata o mercado como inimigo. Porque acredita, com fé de seminarista, que tudo se resolve com papel timbrado.
E, no entanto, a resposta é tão óbvia que chega a doer. Facilitar a construção. Libertar o solo urbano. Desburocratizar os licenciamentos. Criar condições reais para que se construa mais, melhor, mais depressa. E, já agora, ter uma ideia nova. Uma só. Uma que não venha do manual da OCDE. Por exemplo: uma moratória fiscal de dez anos, no mínimo, para quem queira construir casas para jovens. Isenção de IVA nos materiais de construção. Suspensão das taxas camarárias, do IMT, do imposto de selo, de tudo. Quem quiser construir para vender ou arrendar a jovens até aos 35 anos não paga nada disto. O mesmo para quem queira construir a sua primeira habitação. Zero. Um regime especial. Excepcional. Como excepcional é o buraco em que nos meteram.
Seria uma medida simples, barata até (porque não se abdica de receita que não existe), e com impacto imediato: permitiria baixar os custos da construção, tornar rentável o arrendamento jovem, atrair investimento privado que hoje foge como quem foge de uma infestação de burocratas. Os custos de impostos e licenciamentos oneram uma habitação em cerca de 40%. Mas acima de tudo, seria um sinal: um gesto político de que o Estado deixou finalmente de ser o problema para ser parte da solução. Não com mais fundos comunitários, não com mais planos estratégicos, mas com menos medo da liberdade e mais confiança na capacidade dos portugueses.
Mas isso exige coragem. E coragem é coisa rara. Exige pensar contra o politicamente correcto, bater de frente com a ideologia dominante, dizer aos senhores de Bruxelas que, por uma vez, não vamos seguir a cartilha. E isso, sabemos bem, não vai acontecer. Porque Portugal prefere fingir. Fingir que controla os preços. Fingir que protege os pobres. Fingir que o mercado é mau e o Estado é bom. Fingir que se está a fazer alguma coisa. Enquanto isso, os jovens esperam. E os preços sobem. E as casas continuam a não existir.
E nós, como sempre, discutimos o sintoma e deixamos morrer o doente.
Junho 2025
Nuno Morna
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