O Parlamento em Part-Time (e a Vergonha em Full-Time).

A sessão parlamentar de ontem acabou por volta das onze, a manhã mal lavada ainda, os olhos ensonados da "ótonomia" insular ainda a tentarem ajustar-se à luz fluorescente dos monitores e ao ar condicionado a fazer de conta que areja as ideias. Onze da manhã. A essa hora, no tempo dos meus avós, já se tinham ordenhado vacas, lido o jornal e discutido o preço do açúcar com um cigarro apagado ao canto da boca. Agora, termina-se uma sessão plenária com um voto de congratulação e uma coisa chamada projecto de resolução, que é como quem diz um papel onde se declara algo evidentemente inútil e irreversivelmente esquecido assim que se imprime. Não se tratou de um debate. Não se tratou de governação. Tratou-se de estar ali. De marcar presença. De pisar o palco, levantar a mãozinha, aprovar o disparate e regressar ao conforto da vidinha.

O Parlamento da Madeira, essa catedral sem fé, não tem nada para discutir. E, pior que isso, não quer ter. Não vá alguém dar por ela. São raras, raríssimas as excepções que ainda acreditam que legislar serve para alguma coisa, e mesmo essas começam a parecer espécies ameaçadas, aves migratórias sem norte. O resto, aquele amontoado de biografias incompletas com cartões de deputado, arrasta-se entre comissões de meia hora (porque o cérebro também se cansa, coitadinho), debates marcados a medo e uma série de intervalos regimentais que dariam para montar um festival de jazz em horário nobre.

Há quem tenha julgamentos, porque é preciso trabalhar, claro, ser advogado, manter o escritório, pagar a renda do gabinete, e há quem tenha coisas combinadas, compromissos prévios, almoços, consultas de osteopata, sessões de coaching e outras urgências democráticas. O hemiciclo enche-se por momentos, como uma sala de espera onde ninguém quer ser atendido, e esvazia-se logo a seguir, sem mágoa nem saudade. Isto não é um parlamento. É um café com microfones e mobiliário escandinavo. É um centro comercial ao domingo de manhã, onde ninguém sabe bem o que foi ali fazer, mas vai na mesma, por hábito, por tédio, por status.

Não há incompatibilidades. Ninguém se incomoda com nada. Ser deputado é como ser modelo em catálogo de supermercado: está-se ali porque calhou, porque dava jeito, porque se conhece alguém. As comissões são uma espécie de intervalo entre um telefonema e uma ida ao ginásio. As votações passam como a chuva em Abril: ninguém se molha e todos dizem que está tudo bem. E quando não sabem o que fazer, o que é quase sempre, há sempre o tal intervalo regimental. É como o botão de pânico da democracia. Carrega-se e espera-se que passe.

Depois vêm os comentários. As bocas. A raiva de quem olha para isto do lado de fora e diz que “é tudo a mamar”. Que “aquilo são só tachos”. E têm razão. Têm mais razão do que os próprios deputados, que já nem se lembram do que foram fazer ali, nem para que servem, nem o que é um projecto de lei, nem onde fica a vergonha.

É esta a Madeira institucional. Uma terra onde a política se pratica entre duas reuniões de condomínio e um voo low cost para o continente. Um parlamento de opereta, cheio de personagens que falam para dentro, não vá alguém cá fora ouvir. Um teatro de sombras, com intervalos para digestão e cafés sem açúcar. Uma autonomia reduzida a burocracia e papel timbrado, onde a única coisa que se fiscaliza com rigor é o estacionamento.

E o pior de tudo, o mais cruel, é que fomos nós que os pusemos ali. Fomos nós que os elegemos. Nós, os democratas de ocasião, os cidadãos em piloto automático, os espectadores de uma comédia triste onde o riso vem da falta de alternativa. Não nos iludamos: não há golpe de Estado, não há conspiração. Há só o vazio. O grande, redondo e confortável vazio de um parlamento que reflecte exactamente a Madeira que temos.

Junho 2025

Nuno Morna



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