O Reino da Fezada.

[Quando a ignorância se torna método e a política uma superstição institucionalizada]


Li há dias (e como sempre, quando se lê aquilo que nos incomoda, aquilo que se cola a nós como uma nódoa, já não sei se foi num jornal velho, se num livro esquecido, se nas palavras soltas de alguém com voz de quem já desistiu) que a política, esta nossa política de cada dia, se faz mais por fezada do que por razão, por fé do que por método, por um palpite de intestino do que por uma qualquer decência intelectual. E fiquei a pensar nisso, primeiro como quem coça uma ferida, depois como quem percebe que a ferida é mais funda do que parecia. Porque é verdade. Porque é exactamente isso. Porque é assim que se governa esta terra que já não se governa: numa espécie de superstição institucionalizada, como se cada despacho fosse uma reza, cada decreto uma oração lançada ao vazio. Há um lado litúrgico nisto, quase medieval, de quem actua sem saber, esperando que o céu resolva aquilo que a cabeça recusa compreender.


Ninguém estuda. Ninguém lê. Ninguém pergunta. Como se o acto de perguntar, esse acto simples, esse gesto de humildade que sempre antecedeu qualquer progresso, fosse uma confissão imperdoável. Porque perguntar, aqui, é expor-se. É mostrar a falha. É arriscar que alguém repare que não se sabe. Que não se domina. Que não se entende. E no fundo, todos eles sabem, mesmo os mais ruidosos, mesmo os mais sorridentes nos painéis televisivos e nas inaugurações, que o pior que pode acontecer a um medíocre não é ser derrotado: é ser desmascarado. É que alguém, num gabinete qualquer, diga de repente: “Mas o senhor não percebe disto, pois não?” E essa pergunta, simples e cortante como uma navalha, é o terror absoluto. Porque o poder, entre nós, constrói-se não sobre competência, mas sobre a ilusão de que ela existe.


E então não se pergunta. Nunca se pergunta. Evita-se o incómodo. Rodeiam-se de acólitos, que é como quem diz, gente ainda mais ignorante, mas obediente, para que ninguém ouse pôr em causa a pequena farsa. Os gabinetes tornam-se salas de eco. Os conselhos de governo, assembleias de ignorância cúmplice. O saber é visto como ameaça. A dúvida como fraqueza. E o pensamento, esse acto solitário e lento, como um luxo que só os desempregados podem ter. Vão decidindo assim, às cegas, como se a governação fosse uma espécie de jogo de cartas: o presidente vira um joker, um secretário joga um trunfo, e todos esperam que a sorte os salve da ruína que eles próprios semearam.


Mas o que não entendem, ou entendem demasiado bem e fingem não entender, é que a verdadeira sabedoria está precisamente em reconhecer os próprios limites. Em saber quando calar, quando escutar, quando abrir a cabeça para que entre qualquer coisa que valha a pena. Em rodear-se de gente melhor, mais capaz, mais lida, mais crítica. Em decidir apenas depois de duvidar. Em hesitar antes de legislar. Em perguntar, perguntar sempre, porque quem pergunta, mesmo que não saiba, está já num lugar mais elevado do que quem finge saber e se afunda na própria vaidade. Só que isto exige coragem. A coragem de ser pequeno para poder crescer. A coragem de ser ignorante para um dia talvez compreender. E essa, está em extinção.


Faz-se política como quem acredita em milagres. Como quem espera que os problemas se resolvam por si, que os orçamentos se equilibrem por obra do Espírito Santo, que os cidadãos acreditem no que se diz porque sim, porque está no soundbite, porque passou no scroll. Vive-se da fé no improviso, no truque, na estatística martelada. Já não se governa: administra-se o ruído. Já não se discute: gira-se a imagem. Já não se projecta: apaga-se o incêndio do dia com uma mangueira furada e um sorriso ensaiado.


E depois admiram-se. Fazem conferências de imprensa, convocam cimeiras, escrevem manifestos sobre o descrédito da política, como se não fossem eles, precisamente eles, os artífices da grande tragédia. Como se não fossem os primeiros a trocar o saber pelo spin, a escorraçar os que pensam, a chamar “elitistas” aos que lêem, a desdenhar da técnica, da ciência, da cultura, do pensamento. Como se a Madeira fosse uma telenovela e os secretários actores de segunda categoria, pagos para fingir que fazem, enquanto o enredo se arrasta entre cortes de fita e fotografias nas empresas visitáveis.


Talvez o mais trágico nisto tudo, e há sempre um grau de tragédia em qualquer coisa que envolva o futuro de um povo, é que já quase ninguém se espanta. Já quase ninguém reage. A política tornou-se tão pobre, tão previsível, tão resignada à mediocridade, que até a revolta perdeu força. Ficámos todos a meio caminho entre o cinismo e o bocejo. E os que ainda tentam pensar, os que ainda tentam perguntar, os que ainda tentam levantar a mão, são vistos como excêntricos. Ou, pior, como perigosos.


E é assim. A democracia e a autonomia morrem devagar, não às mãos de um tirano, mas às mãos de um pavão talvez bem-intencionado. E nós deixamos. Porque estamos cansados. Porque já não acreditamos. Porque fomos ensinados a ter fé. Fé cega, fé surda, fé muda. Fé no Estado, fé no líder, fé na fé. E a fé, quando não se questiona, é só outra forma de servidão.


Junho 2025

Nuno Morna





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