PIDDAR: O Teatro de Sombras com Fita Métrica.

Não há plano, há maquilhagem. Não há governação, há despesa. E, no fim, não há autonomia, mas apenas um teatro de sombras encenado com fita métrica, formulários europeus e a pantomina de uma estratégia que nunca chegou a sê-lo. O PIDDAR 2025, esse nome pomposo como as fardas de cerimónia das Esquadras de Navegação Terrestre, é, talvez, o documento mais acabado de uma política feita de contabilidade e faxina, de pagamentos a tempo e horas a empreiteiros certos e de fotografias ao lado de máquinas escavadoras, com sorrisos plastificados como os dos manequins que se amontoam nos saldos da Rua Fernão de Ornelas. Dizem-nos, de modo cerimonioso e em tom de liturgia orçamental, que este plano representa o futuro da Região Autónoma da Madeira. Não representa. O que representa, com uma fidelidade arrepiante, é o medo. O medo de pensar. O medo de reformar. O medo de expor a ruína moral de um sistema que vive da aparência da obra e da ausência do resultado. É o medo de governar.

A abertura do documento promete tudo: modernidade, inclusão, sustentabilidade, inovação, eficiência, inteligência territorial, digitalização, longevidade, transição climática, transição energética, resiliência e sabe-se lá que mais verbos em particípio que se foram colando ao jargão institucional como os restos de etiquetas que não se desprendem do vidro. Mas depois lê-se o conteúdo. Ou melhor: tenta-se atravessar, como quem caminha por um labirinto de corredores mal iluminados, esse emaranhado de quadros e siglas, de "objectivos estratégicos" e "áreas de intervenção prioritária", de verbas prometidas e obras previstas, de estudos por fazer e relatórios por terminar. E percebe-se que o PIDDAR é uma ficção sem autor. Ou, pior ainda, com demasiados autores, técnicos obedientes, directores de serviço prestimosos, chefes de gabinete zelosos, todos eles empenhados em servir o príncipe do dia, o Senhor Presidente do Governo Regional "y sus muchaxos", como se se tratasse de um Doge veneziano cercado de escribas e obsequiadores.

Tudo o que se anuncia no preâmbulo, essa introdução redigida como quem se apresenta a uma comissão de Bruxelas e não a uma comunidade política viva, esbarra de imediato com a realidade orçamental: a esmagadora maioria do investimento continua a ser canalizada para infraestruturas materiais e sectores subsidiodependentes. A agricultura, o turismo, as actividades tradicionais, a construção civil, a maquinaria da saúde pública em modo hospitalocêntrico, são estes os verdadeiros receptores daquilo que o plano chama, sem ironia, "dinâmica transformadora". Transformar o quê? O que é que se transforma ao repetir projectos de reabilitação de estradas, ao renovar equipamentos sem alterar funções, ao construir mais um prédio público para abrigar um novo instituto cuja utilidade será mensurável apenas pelos salários pagos e pelos directores nomeados?

Este não é um plano de investimento. É um manual de sobrevivência do regime. Uma teia intricada de compromissos tácitos com as clientelas habituais, com os prestadores de serviços que orbitam em torno do aparelho de Estado como satélites gastos e previsíveis. O PIDDAR 2025 é, por isso, a expressão de um poder que perdeu a capacidade de imaginar. Que substituiu a política pela gestão. Que desistiu de pensar a Madeira como um espaço de emancipação e a tornou numa colónia orçamental da União Europeia, onde cada euro investido é contabilizado com zelo e cada ideia nova é vista como uma ameaça à estabilidade do favor.

E depois há a retórica da “resiliência”. Palavra da moda, daquelas que entram pelas janelas das instituições públicas com o vento dos fundos europeus. Fala-se de “resiliência” como se se tratasse de uma substância injectável, uma vitamina que se compra por ajuste directo e que se inscreve no orçamento com rubrica própria. Mas a verdade é que a Madeira não precisa de “resiliência”. Precisa de liberdade. E essa não se compra, nem se adjudica, nem se assina num despacho conjunto. Essa exige risco, conflito, coragem e pensamento político. Nada disso existe no PIDDAR. Há números. Há projectos. Há promessas. Mas não há uma única ideia transformadora que questione os fundamentos do modelo económico regional, que desafie a lógica do subsídio, que enfrente o desperdício, que desfaça o nó da dependência.

O que há, isso sim, é uma obsessão pela infraestrutura sem propósito. Estradas requalificadas para ligar zonas despovoadas, edifícios públicos renovados que albergam serviços redundantes, centros tecnológicos erguidos sem tecnologia, projectos de “digitalização” cuja única função é dar a aparência de modernidade a processos administrativos que continuam a depender de papel e carimbo. A Região vive há décadas sob a lógica da inauguração: o corte da fita, a fotografia institucional, a nota de imprensa, o post nas redes sociais. O PIDDAR 2025 é o compêndio técnico dessa lógica: um calendário de obras e aquisições que visa, mais do que o desenvolvimento, a reprodução simbólica do poder.

Mais grave ainda do que a falta de visão é a ausência total de avaliação. Em nenhum momento se propõe um sistema robusto de medição de impacto. Os indicadores são burocráticos: número de projectos iniciados, percentagem de execução, metros quadrados reabilitados. Mas não se pergunta, porque seria escandaloso, se as pessoas viverão melhor, se o território será mais coeso, se a economia será mais autónoma, se o conhecimento será valorizado, se a cidadania será mais livre. A avaliação é substituída por uma contabilidade anémica que contabiliza despesas como se isso bastasse para legitimar um plano de desenvolvimento.

Mas como avaliar o que nunca se propôs ser julgado? Como medir um plano que não quer verdadeiramente mudar, mas apenas manter? O PIDDAR 2025 não é um documento de governo, é um espelho mal polido da própria decadência de um modelo de governação regional que se recusa, teimosa e prudentemente, a olhar-se ao espelho. Não há ambição, há ofício. Não há audácia, há manutenção. Não há ruptura, há tapeçaria de remendos, e, como em toda a tapeçaria envelhecida, a sujidade acumula-se nos cantos que ninguém ousa levantar.

Tomemos, por exemplo, o eixo da inovação e conhecimento, essa promessa gloriosa que deveria elevar a Madeira para além do turismo sazonal e da função pública multiplicada em organismos e institutos de utilidade duvidosa. O plano enuncia, com a solenidade de um catecismo tecnocrático, investimentos em “polos de inovação digital”, “navios de investigação científica”, “centros de empreendedorismo”, “hub’s tecnológicos” e outras fantasias com nomes importados de brochuras de Silicon Valley. Mas a realidade é esta: não há uma estratégia clara de captação de talento. Não há uma política fiscal agressiva que atraia empresas inovadoras. Não há investimento significativo em centros de investigação com autonomia científica e governação não-partidária. Não há nada que se assemelhe sequer ao início de um ecossistema de inovação, porque isso exigiria uma revolução institucional: liberdade nas universidades, independência nos centros de decisão, ruptura com a lógica do compadrio.

Na Madeira, os projectos inovadores têm direcção política antes de terem conteúdo. São nomeados antes de existirem. São uma espécie de planos quinquenais socialistas. E como tal morrem muitas vezes na mesma semana em que são inaugurados, asfixiados pela burocracia, pelo desinteresse, pela ausência total de exigência. O que interessa, no fundo, é que existam para poderem ser apresentados. O que interessa é a capacidade de mostrar o que não se quer cumprir. O PIDDAR é, também neste aspecto, exemplar: um catálogo de intenções que se extinguem no acto de serem anunciadas. Como se o futuro fosse um palco onde se ensaia uma peça que ninguém tem intenção de estrear.

Mais obsceno, porém, é o tratamento dado à pobreza e à exclusão social. As palavras são generosas. O texto é cheio de afecto institucional. Mas as acções previstas são variantes do velho assistencialismo que garante votos e perpetua dependências. Em lugar de criar mobilidade social através da educação exigente, do mercado de trabalho dinâmico, da habitação acessível baseada no rendimento e não na lista de espera, o plano aposta na manutenção das redes de subsidiação. O objectivo não é libertar o indivíduo. É mantê-lo num estado de tutela permanente, como se a autonomia pessoal fosse uma ameaça e não uma meta da política pública. Não se combate a pobreza distribuindo esmolas com nome moderno, combate-se removendo os obstáculos que impedem a livre escolha, o risco, o mérito, a mobilidade. Mas esses obstáculos não são removidos porque são o cimento do sistema clientelar que sustenta o regime.

E depois há os silêncios, sempre os silêncios, mais eloquentes do que as promessas. O plano nada diz sobre a reorganização do sistema de transportes públicos, nem sobre uma verdadeira rede intermunicipal que ligue as zonas periféricas à capital regional com eficácia e regularidade. Não diz uma palavra sobre a ligação marítima com o continente, essencial para qualquer autonomia económica. Não propõe uma estratégia de internacionalização da economia madeirense que vá além das feiras de turismo e das promoções dos bordados e do vinho. Não aponta para nenhum novo sector económico com valor acrescentado. Nada sobre energias oceânicas a sério, nada sobre biotecnologia, nada sobre inteligência artificial ou redes de comunicação soberanas. Não se vê sequer a sombra de um plano para enfrentar os desafios demográficos que nos esmagam: envelhecimento, fuga de cérebros, desertificação dos concelhos mais frágeis. O plano fala de tudo para não dizer nada.

Por fim, há a obsessiva subordinação à União Europeia. O documento está construído como se o Governo Regional fosse uma entidade subcontratada por Bruxelas. A obsessão com as “medidas do PRR”, os “objectivos do PT2030”, os “eixos da coesão territorial”, os “critérios de elegibilidade”, tudo indica que a Madeira, tal como aqui aparece, não é uma Região Autónoma, mas uma delegação de serviços de gestão de fundos. Autonomia não é isto. Autonomia é liberdade para errar, para decidir, para recusar fundos se estes forem um obstáculo à reforma estrutural. Mas não. O PIDDAR 2025 é um exercício de submissão. Um pedido de favor. Um alinhamento acrítico com o que se espera de nós. A política transformada em prestação de contas a um credor difuso.

É esse o seu maior crime: não a mediocridade do seu conteúdo, mas o horizonte mental estreito, domesticado e subalterno que revela. A Madeira que emerge deste plano é uma Região sem nervo, sem rasgo, sem rebeldia. Uma Região que vive do que lhe é dado e não do que é capaz de criar. Uma Região orçamentada, não pensada. Administrada, não governada.

E assim se conclui este relatório disfarçado de visão. Este plano que não ousa ser projecto. Este orçamento que, de tanto prometer, acaba por ser apenas um sintoma: o de um poder que, ao perder o hábito de pensar, perdeu também o direito de sonhar. Um poder que já não se dirige à História. E que, ao fazê-lo, condena a Madeira não à pobreza, mas a algo pior: à irrelevância.

Junho 2025

Nuno Morna



Comentários

Mensagens populares deste blogue

Silêncio Frio: O Funeral Turístico do Ribeiro

O Dia em que o JPP se Demitiu de Santa Cruz.

O cadáver adiado que se recusa a sair de cena.