Rafael Nunes e Lucro como Culpa Católica.
[ou o socialismo envergonhado de quem nunca teve de pagar salários]
Rafael Nunes levantou-se ontem na Assembleia como quem vai à missa: cabeça baixa, mãos unidas na palavra justa, olhos húmidos de indignação moral, e quando abriu a boca, já se adivinhava a ladainha, como se todos os seus discursos fossem repetições de um velho sermão decorado num colégio onde a economia se aprendia com o padre e o medo. Disse: “os privados querem é lucro”, e fez-se silêncio, não por respeito, mas por constrangimento. Foi como se alguém tivesse anunciado, num funeral, que o morto não era boa pessoa. E no entanto, era só uma constatação, banal e verdadeira, dita com a solenidade de quem julga estar a denunciar uma conspiração satânica. Os privados querem lucro. Claro. E os padeiros querem vender pão. E os agricultores querem colher batatas. E os médicos querem ser pagos. E os deputados querem continuar a ser deputados.
Mas Rafael Nunes não diz as coisas para que se entendam. Diz para se proteger delas. Não está a argumentar. Está a confessar, como quem se acusa de ter pensado num pecado, de ter imaginado um mundo onde o lucro não fosse uma coisa feia, como se fosse uma ofensa à virgindade de uma ideologia que se arrasta, exausta, desde os anos setenta. Não é a crítica de um sistema. É o pudor de quem nunca teve que o enfrentar.
Porque o que o deputado verdadeiramente teme, embora não o diga, talvez nem a si mesmo, é a realidade. Aquela realidade árida, incómoda, repetitiva, feita de contas ao fim do mês, de prazos que não se adiam, de clientes que não voltam, de dívidas que não desaparecem com retórica. Esquece, ou prefere esquecer, que sem lucro não há impostos, e sem impostos não há salários na função pública, nem reformas, nem escolas gratuitas, nem o hospital onde ele irá um dia tratar o colesterol, nem sequer a Assembleia onde hoje vocifera contra o motor que mantém tudo isso a funcionar.
Sem lucro, não há país. Há caridade. Há miséria. Há fila para o pão.
Mas o socialismo sentimental não se interessa por isso. Prefere a estética do fracasso, a moral do sofredor, o lirismo do prejuízo. Para esta gente, o lucro é um problema moral, não um dado económico. É uma espécie de culpa católica aplicada à contabilidade: se há lucro, alguém roubou. Se há sucesso, alguém caiu. Se uma empresa prospera, é porque o sistema faliu. Esta é a sua verdade. Uma verdade cómoda, preguiçosa, sem números nem responsabilidade. Uma verdade de quem nunca teve que pagar salários a tempo, nem assumir um risco, nem inventar trabalho para os outros além do próprio.
O deputado fala como quem nunca saiu de casa. Como quem acha que o mundo se organiza por bondade espontânea, que o pão chega à mercearia por milagre, que os medicamentos aparecem nas farmácias por convicção ideológica, que os aviões voam com fé. Fala como quem crê que a vida é um direito do Estado e não um esforço das pessoas. E por isso detesta o lucro, porque o lucro recorda-lhe, a cada instante, tudo aquilo que ele não sabe fazer, não quer aprender, não compreende, mas de que depende, mesmo sem querer.
Goste ou não, o sr. deputado vive do lucro. Indirectamente, sim, mas vive. Vive dos impostos cobrados às empresas que lucram. Vive das contribuições dos trabalhadores que lucram com o seu trabalho. Vive das taxas aplicadas aos negócios que geram rendimento. Vive do IVA de cada café, de cada pão, de cada sapato comprado num pequeno comércio que, todos os meses, se vê obrigado a decidir se pode continuar a pagar rendas, salários, electricidade e ainda por cima ser acusado de ganância.
O que Nunes não suporta, e é isso que o corrói por dentro, é a ideia de que o mundo se possa mover sem ele. Que a liberdade funcione. Que alguém monte um negócio, tenha sucesso e prove, com esse sucesso, que a sociedade pode prosperar sem o Estado a comandar tudo. Porque isso anula-o. Apaga-o. Torna-o redundante. E não há nada mais insuportável para um político que descobrir que não faz falta.
É por isso que diaboliza o lucro com tanta fúria: porque o lucro é autonomia, é independência, é iniciativa, é a mais brutal e crua manifestação de liberdade que existe numa economia. É alguém que diz: não preciso do vosso favor. Não preciso da vossa licença para existir. Posso. Faço. Arrisco. Cresço. E isso, para quem acha que o Estado deve ser o centro da vida, é uma ofensa intolerável. Porque mostra que há mundo para lá do Estado. Que há vida sem tutela. Que há futuro sem eles.
No fundo, o que Rafael Nunes queria dizer, mas não disse, porque não ousa, é isto: “tenho medo que deixem de precisar de mim”. E por isso combate o lucro. Como quem combate a liberdade dos outros com a fúria ressentida de quem nunca soube o que fazer com a sua.
E é por isso que o ouvimos na Assembleia. Porque o país continua a lucrar. Apesar dele. E, ironicamente, é esse lucro que ainda o mantém de pé.
Junho 2024
Nuno Morna
PS: Não obstante o que ficou dito acima, e ficou o essencial, importa ainda registar, para que não passe em branco, a triste e patética demonstração de incivilidade do Sr. Secretário Regional do Turismo, Ambiente e Cultura, Eduardo Jesus, que decidiu brindar a Assembleia Legislativa e os madeirenses com um conjunto de insultos de tasca mal varrida, chamando “palhaço-mor” e “bardamerda” ao deputado Rafael Nunes e "gaja" à deputada Sílvia Silva.
Não se trata aqui de defender os deputados, que não precisam, e que, de resto, se têm defendido com bastante competência, mas de sublinhar o evidente: em qualquer governo a sério, num terra com um pingo de vergonha, Eduardo Jesus já se teria demitido ou sido demitido antes de terminar as frases. O facto de não o ter sido diz muito, demasiado, sobre o estado a que isto chegou.
A verdade crua é esta: o Governo Regional deixou de ter noção de onde está, para quem governa e com que regras. O poder absoluto e prolongado, como sempre, embriaga. E este insulto público, proferido num órgão de soberania regional, não é uma simples grosseria, é um sintoma. Um sintoma de desespero, de descontrolo e de uma impunidade cultivada ao longo de décadas.
Eduardo Jesus já não distingue entre uma reunião do Conselho de Governo e uma conversa de balcão de tasca ao fim da tarde. Confunde debate com arruaça, confronto político com ataque pessoal, e não percebe, ou já não quer perceber, que a democracia também se mede pelos limites da linguagem.
E que quando um Secretário insulta um deputado como um rufia de bairro, o que está em causa não é só a sua educação: é a legitimidade de todo o executivo que o mantém em funções.
Não se demite porque ninguém o obriga. E ninguém o obriga porque todos têm medo que, atrás dele, caia o edifício inteiro. E talvez caia mesmo. Porque quando se governa como se estivesse tudo garantido, é geralmente aí que tudo começa a ruir. E com estrondo.
BOM!
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