A Editora que Falta e a Ilha que Espera (ou o que se escreve quando já não se espera nada).
[Porque o livro é só o começo e a cultura é uma cadeia inteira, não um favor ocasional]
A Madeira precisa de uma editora. Digo-o bem alto. Mas talvez não chegue dizê-lo. Talvez seja preciso explicar. Porque o que se joga aqui não é apenas o nascimento de mais um logotipo com aspirações tipográficas e promessas de publicações trimestrais que morrem ao segundo número. O que se joga aqui é o princípio de uma economia cultural feita com a cabeça, com as mãos e com o coração. Uma verdadeira indústria do livro, com tudo o que isso implica. E isso implica muito mais do que um escritor e um título. Implica emprego, circulação, exigência, concorrência, investimento, comunidade. Implica, em resumo, movimento. E não o movimento burocrático das cadeiras giratórias nos gabinetes públicos, mas o movimento verdadeiro, aquele que alimenta a vida à volta de uma ideia.
Uma editora a sério não é só um editor e um autor. É um organismo completo. É, por definição, um projecto colectivo. Quando nasce uma editora independente, nascem com ela muitas outras actividades até então adormecidas ou invisíveis. Um bom livro precisa de um bom designer gráfico, alguém que compreenda que uma capa não é uma moldura decorativa, mas o primeiro gesto de sedução. Precisa de um paginador atento, desses que sabem que a mancha gráfica de um texto também respira, comunica, também diz. Precisa de um revisor profissional, que conheça a língua como um sapateiro conhece o couro: de dentro para fora. Precisa de tipografias com critério, de gráficas competentes, de fornecedores de papel com gosto e não apenas com orçamento. Precisa de quem trate da logística, da distribuição, da presença em feiras, da venda em livrarias, que por sua vez precisam de editores com obras que se vendam sem ser por caridade ou compadrio. Precisa de empresas de manutenção de máquinas, de “software” de edição, de sistemas de digitalização e backup, de fotógrafos, de ilustradores, de assessores de imprensa, de consultores de imagem, de animadores culturais, de mediadores de leitura, de tradutores. Precisa, enfim, de um ecossistema inteiro. E nós, aqui, temos tudo isso à espera. Parado. À míngua. Sem editoras que puxem por ele.
É essa ausência de indústria que mantém a cultura madeirense no estado vegetativo em que se encontra: dependente, tímida, periférica até dentro da própria periferia. Porque enquanto não houver editoras a disputar leitores, a disputar autores, a disputar ideias, a literatura continuará refém de quem a manda imprimir. E refém de quem imprime o que não se vende porque foi encomendado para ocupar lugar na estante, não para ser lido. Se houver uma editora capaz de lançar um romance, mas também de gerar trabalho para três freelancers, dois prestadores de serviços, uma gráfica local e uma livraria de bairro, então a literatura deixará de ser apenas um capricho de domingo à tarde para se tornar parte do tecido económico regional. E isso muda tudo.
Uma editora que publique sem depender do subsídio público, e que o faça com critério e consistência, é mais do que um negócio. É um pequeno motor de desenvolvimento. Pode começar numa sala com duas pessoas e uma ideia, mas em dois anos estará a pedir orçamentos a fornecedores, a contratar serviços, a imprimir fora dos horários normais, a precisar de embalagens, de transporte, de presença digital profissional, de investimento em campanhas. A Madeira, que se orgulha tanto da sua tradição de bordado e bananeira, podia começar a orgulhar-se de exportar literatura com rosto próprio, e com ela, exportar cultura gráfica, “design”, pensamento crítico, estética. Uma cadeia produtiva inteira a nascer de um acto tão simples quanto publicar alguém que escreve bem.
Mas há mais. Com uma editora séria, capaz, competitiva, surgirá uma coisa que hoje quase não existe: um mercado regional de leitores activos. Porque o leitor nasce onde houver oferta regular e estimulante. O público leitor é cultivável. Mas para isso, precisa de ter livros à sua volta. Livros feitos aqui. Que falem daqui. Que revelem e interpelem, que desafiem e emocionem. E isso não se consegue com edições pagas pela câmara ou pelo governo para distribuir no Natal com uma fita de cetim. Isso só se consegue com uma editora que trate o leitor como adulto, como interlocutor exigente, e não como figurante agradecido.
É fundamental aliciar as empresas regionais a tornarem-se patronos activos de edições literárias, não como acto de mecenato simbólico, mas como investimento inteligente numa cadeia de valor cultural que as beneficia a todas. Uma empresa que apoia a publicação de um livro associa-se a um bem durável, intangível e nobre, afirma-se como agente de identidade, de memória, de continuidade. Em vez de gastar milhares em jantares institucionais, cartazes vazios ou patrocínios de circunstância, pode colocar o seu nome num objecto que perdura, que circula, que forma, que toca. E ao fazê-lo, cria mercado, alimenta talento, estrutura um sector, em vez de, como agora, assistir ao seu colapso sob o peso dos favores e da dependência.
Por isso, a questão já não é apenas cultural. É económica, social e política. Uma indústria do livro que funcione pode criar postos de trabalho directos e indirectos. Pode dar expressão a talentos escondidos. Pode impedir a emigração intelectual que todos choram mas ninguém evita. Pode até ensinar os jovens que escrever bem e editar com brio são profissões legítimas, e não manias de gente com tempo livre.
A Madeira tem recursos. Tem pessoas. Tem histórias. Tem talento. Falta-lhe, apenas, a coragem de fazer nascer uma editora com os olhos abertos, os pés na terra e o coração na língua. Uma editora que recuse ser um apêndice cultural do governo, um escritório de favores, um arrastamento de vaidades. Uma editora que arraste consigo todo um sector adormecido. Que dê trabalho a quem sabe fazer bem, e faça desaparecer, por constrangimento, os que andam há décadas a fazer mal e a ser pagos por isso.
Se essa editora surgir, não salvará tudo. Mas será o começo de qualquer coisa mais digna. Mais viva. Mais nossa. E isso, convenhamos, já seria muito.
Janeiro 2025
Nuno Morna
P.S.: Um exemplo elucidativo daquilo que uma editora regional pode e deve ser é a Letras Lavadas, sediada em Ponta Delgada, nos Açores. Criada com uma vocação clara de valorização do património insular, a Letras Lavadas não se limitou a publicar livros: construiu, ao longo dos anos, um catálogo coerente e identitário, dando espaço a autores açorianos nas áreas do romance, poesia, ensaio, história e literatura infanto-juvenil, enquanto dinamizava uma rede de distribuição, presença em feiras, parcerias com livrarias locais e uma relação directa com os leitores. Mais do que uma editora, é um projecto cultural com visão, que conseguiu mobilizar fornecedores regionais, criativos gráficos, agentes culturais e instituições locais para criar uma verdadeira micro indústria do livro nos Açores. Serve assim de exemplo vivo do que poderia ser feito na Madeira, se existisse a mesma ousadia e a mesma confiança na capacidade criadora da Região.
Claro que temos a Imprensa Académica, sim, a CADMUS, com o seu zelo digno e apoio às letras regionais, que muito faz, é verdade, muito fez, muito fará, mas não é disso que falo, não é isso que falta. O que falta é uma editora com ouvidos sujos do pó das ruas e das palavras ditas depressa demais, uma que não se penteie antes de sair à rua, uma que vá ao fundo das frases buscar os restos, os nervos, os estilhaços, e os transforme em livros com febre. Uma editora que não tenha medo de arder com os seus autores, que os ouça a gritar dentro das páginas e diga sim, sim, vamos por aí mesmo, até onde a sanidade não entra e a lucidez é um cão vadio a lamber feridas. Uma editora que aceite o delírio como programa e a disrupção como vício, uma editora, enfim, que saiba que publicar é amar de joelhos, de mãos sujas e coração aos gritos.

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