A Ilha Sem Contingência.
[Quando o Governo admite que não sabe o que fazer, e acha isso normal]
O homem disse, com aquele ar de quem acabou de deixar cair a última fatia de bolo no tapete, “não temos nenhum plano [de contingência] para responder ao cancelamento de 40 voos”, e ficou a olhar para nós como quem pede desculpa por ter sido apanhado em flagrante a existir. Disse-o com uma paz que doía. Como se tivesse anunciado que o cão fugira. Ou que alguém morrera e ninguém se tinha apercebido. Disse-o com uma espécie de ausência e desespero de quem, a meio da noite, sentado à beira da cama, com as mãos entrelaçadas no colo e o olhar num ponto qualquer que nunca conseguiu ver. Não temos plano, repeti eu para dentro, como se as palavras fossem um eco numa casa sem móveis, e sem ninguém, e sem memória sequer de ter tido gente dentro.
Na Madeira, que é uma ilha e não uma metáfora, apesar de tanta coisa pedir para o ser, na Madeira, dizia eu, não há plano. Não há plano para o aeroporto, não há plano para o vento, não há plano para a espera. O aeroporto, a veia que nos liga ao corpo que se julga continente, esse lugar que nos tolera, mas não nos entende, esse lugar que nos distribui voos como quem dá esmolas a um órfão por quem já perdeu a paciência. E quando os voos não vêm, e quando os aviões se recusam a aterrar, e quando os passageiros se acumulam como cartas devolvidas sem remetente, o Governo Regional, essa figura cinzenta e vestida de domingo, levanta os ombros, sacode as responsabilidades como quem sacode migalhas da lapela, e diz que não tem plano.
Não tem. Nunca teve. Nem sequer fingiu ter. E, no entanto, tem hotéis, tem secretários, tem reuniões, tem discursos e tem papel timbrado. Tem tudo menos plano. E o que mais me espanta não é a ausência de plano, é a serenidade com que o anuncia. Como quem diz que chove. Como quem diz que hoje o céu está mais baixo. Como quem diz que o dia afinal não era aquele, que a infância afinal não foi infância, que as promessas feitas em campanha afinal não eram promessas, eram apenas o som de uma boca que precisava de ocupar o silêncio.
E quando diz que não se pode resolver o problema de 40 voos cancelados de um momento para o outro, eu penso na minha vizinha de infância com os sapatos na mão, à espera que o marido voltasse da taberna, e penso que também ela, sem saber ler nem escrever, já tinha um plano. Tinha um plano para o jantar, um plano para o frio, um plano para a vergonha. Tinha mais plano do que este homem de fato e gravata, este homem que se senta nos lugares onde dantes se sentavam os donos das finanças e das decisões, este homem que fala como se a sua própria inutilidade fosse uma espécie de virtude. E se calhar é. Se calhar é. Se calhar a nova política é isto: não saber fazer nada, admitir que não se sabe, e esperar que o povo bata palmas por se ser honesto na miséria.
A culpa, claro, não é dele. É da ANA. É da meteorologia. É do mundo que se mexe. É sempre de outro. Nunca de quem devia ter o comando. Nunca de quem devia ter as mãos no leme. Nunca de quem devia ter tido a decência de pensar antes. De prevenir. De estar. Mas o homem não está. Está na fotografia. Está nas cerimónias. Está nas frases escritas por outros. Está nos bastidores do que se julga poder. Mas não está na espera. Não está no desespero. Não está no salão do aeroporto com as crianças a chorar de fome porque o voo foi cancelado e ninguém lhes disse nada. Não está nos olhos de quem queria apenas ir enterrar a mãe ao continente. Está, se tanto, num carro oficial com ar condicionado, a caminho de um almoço pago por alguém que não sabe bem porquê.
O que me enoja não é a ausência de solução. É a ausência de vergonha. É este encolher de ombros, institucionalizado, esta política que é apenas a arte de continuar sentado. Esta governação que se resume a sobreviver ao dia, e depois ao outro, e depois ao outro, até que o tempo decida fazer o que a coragem não faz: mudar.
E depois há este detalhe grotesco, este detalhe tão português, tão nosso, tão triste: a maneira como ele diz “não há plano” como quem espera um aplauso pela sinceridade. Como se o povo devesse agradecer a verdade, mesmo que a verdade seja que o povo está sozinho. E está. Está. Está como sempre esteve: à espera que alguém mande, que alguém saiba, que alguém pense. À espera de um plano. Que nunca vem. Que nunca virá. Porque já ninguém acredita que valha a pena planear o que está condenado a repetir-se. Porque já ninguém acredita.
E então sentamo-nos à beira da cama. Como o presidente da Madeira em frente à câmara. Sentamo-nos, encolhemos os ombros, e dizemos com ar compungido: não temos plano. E calamo-nos. Porque sabemos. Porque sempre soubemos. Que o plano era este. Não haver nenhum.
Julho 2025
Nuno Morna
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