Carta aberta aos que respiram mentira e exsudam ódio.
[Escrita entre o fígado e a madrugada, como se tivesse passado a noite a ouvir os gritos do país ao longe, interrompidos por tosses, por sirenes, por um cão que ladra a um candeeiro fundido numa rua vazia]
Vocês sabem.
Sabem e fazem de conta que não sabem, como quem esconde o prato que partiram atrás do cortinado, com os cacos ainda a brilhar no chão e os olhos cheios de culpa fingida. Mas não há culpa, há cálculo. Um cálculo frio, viscoso, cheio daquela lógica rasteira dos que aprenderam que a dor dos outros é um bom negócio.
Vocês vivem disso. Vivem da dor dos outros como os abutres vivem das carcaças, com aquele voo preguiçoso, circular, hipócrita, fingindo que estão só a passar, mas prontos a poisar assim que o cheiro a morte lhes encha os bicos.
Vocês, que acordam cedo para ver as tendências da estupidez como quem consulta os salmos, não para entender o mundo mas para o desfigurar.
Porque o vosso mundo não é este. Não é o da dúvida, não é o da contradição, não é o da hesitação humana que todos temos quando olhamos alguém nos olhos e nos vemos reflectidos. O vosso mundo é outro: um mundo de certezas berradas, de frases curtas, de simplificações brutais, onde tudo tem de ser bom ou mau, preto ou branco, amigo ou inimigo.
Vocês precisam de inimigos. Precisam deles como precisam de ar, como os beatos precisam do diabo para se sentirem salvos. E se não os encontram, inventam-nos.
Têm uma oficina própria para isso, com ferramentas de linguagem, serrotes de retórica, lixas de indignação falsa, e lá vão construindo inimigos com bocados de estatísticas, frases fora de contexto, caras que vos incomodam por pensarem, e isso, para vocês, é uma provocação intolerável. Pensar. Pensar é, no vosso dicionário, um acto hostil. Uma forma de traição.
E por isso odeiam quem pensa. Odeiam quem lê. Odeiam quem hesita antes de falar. Odeiam quem pergunta. Odeiam quem vos diz que talvez, que as coisas são mais complexas, que a realidade não cabe num tweet, que a raiva não é solução.
E então inventam uma palavra para isso. Chamam-lhes “vendidos”. Chamam-lhes “sistema”. Chamam-lhes “globalistas”, “agentes de Soros”, “agenda 2030”, “comunistas infiltrados”, “pedófilos disfarçados”, “traidores à pátria”, como se a pátria fosse vossa e não de todos nós, até daqueles que vocês desprezam.
Vocês não discutem. Vocês não propõem. Vocês não querem resolver nada, querem só incendiar.
E o incêndio é bonito, não é? Bonito como um castelo de cartas a cair. Bonito como o som dos vidros a partirem-se. Bonito como o silêncio que fica depois do linchamento. Bonito como o eco das vossas próprias vozes a confirmarem-vos uns aos outros que estão certos, que são muitos, que são uma vaga.
Mas não são uma vaga. São espuma. A espuma da história. Aquela que se varre do cais no fim da tarde, quando o mar recua e deixa a porcaria à mostra.
Vocês são uma praga. Não no sentido figurado, no sentido literal, biológico, pestilento. Espalham-se como os fungos nas paredes húmidas das casas pobres, silenciosamente, até que tudo esteja coberto de bolor e já ninguém se lembre da cor original das coisas. São como os ratos que comem os alicerces da casa e depois se ofendem quando esta desaba. Onde passam, deixam um rasto de desconfiança, de medo, de raiva. Uma praga que não precisa de inteligência para crescer, só de calor, escuridão e gente disposta a fechar os olhos. Uma praga que se infiltra em tudo, nas conversas, nos jornais, nos partidos, nas escolas, até na linguagem, e que, como todas as pragas, só se combate com luz, com verdade, com higiene moral.
Chamam “liberdade de expressão” ao direito de mentir.
Chamam “pluralismo” ao vosso direito de calar os outros.
Chamam “coragem” a essa vossa forma cobarde de atacar os indefesos, de escolher sempre o alvo mais frágil, mais exposto, mais incapaz de responder.
São bravos no escuro da internet, valentes no conforto do estúdio, heróis de plástico diante da câmara, mas quando alguém vos confronta de frente, vocês tremem. Tremem como todos os que, no fundo, sabem que não têm razão.
E depois dizem que são perseguidos. Perseguidos, coitados. Vocês, que nunca foram presos. Vocês, que nunca perderam nada. Vocês, que fazem da vitimização uma profissão e da ofensa um modo de vida.
Há um Portugal cansado de vos ouvir. Um Portugal que não aparece nas sondagens, que não grita nas redes sociais, que não partilha memes com frases de Churchill mal traduzidas.
Um Portugal que trabalha, que paga contas, que cria filhos com medo do futuro, mas que não culpa os imigrantes, nem os professores, nem os jornalistas, nem os deputados honestos.
Esse Portugal, o que ainda respira fundo antes de responder, está a ver-vos.
E sabe que não são novos. Já cá estiveram. Com outras bandeiras. Com outros nomes. Com outros símbolos. Mas sempre com o mesmo cheiro. A medo. A raiva. A carne podre da democracia a apodrecer no calor do vosso discurso.
E um dia, quando tudo isto passar, porque passa sempre, mesmo quando custa, vocês vão desaparecer. Não num acto heróico, não num estertor de glória, mas em silêncio, como desaparece a febre depois da infecção, como desaparece o vómito depois do enjoo.
E ninguém vos vai lembrar com saudade.
Serão apenas uma nota de rodapé. Um erro de distracção na história deste país.
E até lá, nós, os que vos dizem não, continuaremos a resistir. Com cansaço. Com lágrimas. Com a sensação de falar contra o vento. Mas resistiremos.
Sem qualquer afecto e com a náusea,
Nuno Morna
Julho 2025
BOM!
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