Eu, Parvo me Confesso.

Sempre que olho para a situação política da Madeira, esta espécie de tragicomédia sem catarse, esta pantomina repetida com a mesma precisão dos relógios de parede das repartições públicas, onde ninguém se dá ao incómodo de acertar o tempo porque o tempo deixou de importar, dou por mim a hesitar entre o vómito e o riso, entre o exílio mental e o insulto baixinho, sussurrado para dentro, de quem já perdeu a esperança, mas ainda não perdeu o tique de querer que as coisas façam sentido. E quando, na solidão do meu espelho, ou do café quase vazio de manhã, ou da varanda onde oiço a ilha ressonar sob o peso da apatia, quando nessa solidão me pergunto o que me leva a acreditar que ainda vale a pena, só encontro uma resposta possível: sou parvo. Um parvo sem redenção. Um parvo sem remédio. Eu, parvo me confesso.

Eu, parvo me confesso.

Porque ainda me dou ao trabalho de ler os programas eleitorais com a mesma atenção com que se lê uma carta de amor, e leio neles apenas a secura burocrática do embuste, a gramática do engano, as frases redondas como barrigas cheias, gordas de nada, com promessas recicladas como papel de embrulho de Natal guardado de um ano para o outro. Porque ainda fico à espera de um rasgo, de uma ideia, de uma visão que ultrapasse o círculo estreito dos conluios e das condecorações caseiras, das nomeações familiares, dos telefonemas às três da manhã para garantir que aquele entra e aquele sai. Porque ainda olho, com olhos de quem não aprendeu, para o hemiciclo como quem olha para um santuário desfigurado, à espera de um milagre laico que nunca virá.

Eu, parvo me confesso.

Porque ainda acredito que a autonomia é para ser uma ferramenta de emancipação e não um brinquedo de gente medíocre a brincar ao Estado. Que a liberdade não se limita a um hino regional e a umas bandeirinhas nos mastros das juntas de freguesia, mas exige responsabilidade, coragem e frontalidade, virtudes que se foram perdendo, primeiro por preguiça, depois por conveniência, e agora por hábito. Porque ainda me espanto com a promiscuidade descarada entre quem manda e quem recebe, entre quem assina e quem fatura, entre quem acusa e quem se cala, como se tudo isto já não fosse sequer escândalo, mas rotina.

Eu, parvo me confesso.

Porque dou por mim a escrever artigos, textos, posts, a participar em debates onde as mesmas perguntas são feitas há vinte anos e as mesmas não-respostas continuam a servir, como se o tempo tivesse congelado entre dois escândalos mal resolvidos. Porque ainda penso, Deus me perdoe, que o debate público devia ser um espaço de confronto de ideias, e não uma feira de vaidades, uma corrida de egos fracos mascarados de convicções fortes, uma gincana de frases feitas onde cada um tenta parecer mais indignado do que o anterior, enquanto por trás sorriem uns para os outros nos corredores.

Eu, parvo me confesso.

Porque ainda dou pelo coração a bater mais depressa quando ouço palavras como justiça, transparência, bem comum, mesmo sabendo que já não significam nada, que já ninguém as pronuncia com seriedade, que já são apenas vocábulos de catálogo, usados como perfume barato para disfarçar o cheiro a mofo do regime. Porque continuo a achar que esta terra tem talento, tem gente boa, tem força para muito mais do que aquilo a que está condenada. Porque recuso a ideia de que temos o que merecemos. Não. Temos o que nos foi imposto por décadas de chantagem emocional, de dependência financeira, de deseducação cívica deliberada.

Eu, parvo me confesso.

Porque ainda sonho, ainda sonho, repito, com uma Madeira diferente, onde os lugares não se compram, não se herdam, não se garantem com fidelidades caninas ou amizades de infância. Uma Madeira onde a cultura não seja decorativa, onde a juventude não seja decorada com bandeiras partidárias, onde o mérito não seja uma excentricidade. Uma Madeira onde se possa discutir política sem medo, sem favores, sem donos. Onde os que ousam pensar diferente não sejam reduzidos a caricaturas, a alvos fáceis para os cães de fila da ordem estabelecida.

Eu, parvo me confesso.

E sou parvo, sim, por ainda amar esta terra como se ela me devesse alguma coisa. Por ainda me comover com os lugares, os nomes, as gentes, os silêncios do entardecer nas freguesias mais distantes. Por ainda sentir raiva quando vejo o nome da Madeira associado a escândalos, a mentiras, a redes de interesses obscenos que tomaram conta de tudo como hera a invadir muros. Sou parvo porque continuo a acreditar que a lucidez e a palavra podem mudar alguma coisa. Sou parvo porque me recuso a desistir.

Eu, parvo me confesso.

E se isto é ser parvo, então sou. Com todas as letras. Com todos os ossos. Com todas as vísceras. E não troco essa parvoíce por nenhuma sabedoria cínica. Por nenhum lugar à mesa. Por nenhuma palmada nas costas. Porque há um ponto em que ser parvo é tudo o que resta para não ser cúmplice. E entre ser parvo e fazer parte deste sistema que já não respeita nada, nem a si próprio, escolho ser parvo. Parvo e livre. Parvo e inteiro. Parvo e meu.

Eu, parvo me confesso.

E com gosto. E com raiva. E com amor.

Julho 2025

Nuno Morna



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