O Turista Foi Rei. Agora Vem a Multa.
PARTE DO TEXTO QUE HOJE VAI NO "REDE SOCIAL", NO DN MADEIRA
[Miguel Albuquerque confessa, sem o dizer, que governou anos para a quantidade, e só agora, à beira do colapso, descobre a qualidade.]
Disse-o a passada semana, Miguel Albuquerque, com aquele ar de quem nunca teve dúvidas, mas raramente acerta, e os sapatos a brilharem como os sapatos dos mortos em velórios ao fim da tarde, no Caniço, junto ao mar e ao sal e ao eco das ondas. Disse-o assim: “em 2026 começa o novo ciclo do turismo, orientado para a qualidade”. Repetiu-se, como quem recita uma oração sem saber o que significa, com os olhos nos jornalistas como quem pede aprovação a um pai severo que nunca disse “gosto de ti”. E disse isto com a certeza mecânica de quem já não governa pessoas, mas as figurinhas mansas com que enche os discursos como se isso bastasse para governar, palavras desidratadas que se colam à língua como hóstias sem fé.
E com essa frase, essa pequena frase magra como um cão abandonado que ninguém pareceu notar, matou, de um sopro, toda a ficção que ele próprio passou anos a escrever à pressa com letra de menino no caderno do turismo. Se só em 2026 se começa a pensar na qualidade, em quê, então, pensámos até agora? No ruído. No ruído que se cola à pele como pó de obra, nos decibéis da pressa e da voracidade, no som contínuo dos motores, das rodas, dos altifalantes que anunciam excursões em cinco línguas com sotaque de catálogo. Nos números, sempre os números, como se o valor de uma terra pudesse ser medido em camas feitas, em talheres postos, em cabeças contadas à entrada das levadas, números como rosários de uma religião sem deuses, mas com muito dízimo. Nos pacotes promocionais empacotados com a mesma delicadeza com que se embala carne no talho, viagens de sonho com fotografias tiradas ao pôr do sol, filtros no Instagram, mentiras com cheiro a mar e palmeiras de plástico. No enjoo das avenidas saturadas, onde já não se anda, tropeça-se. Onde os velhos da terra encostam as costas às paredes à espera de que passem os grupos, como se fossem tempestades humanas com bonés de agências e garrafas de água penduradas ao pescoço. Na colecção de turistas a pingar protector solar nos passeios gastos pela pressa, todos iguais, como peças de um exército mole e suado, de sandálias com meias e mapas impressos, a caminhar como quem procura uma coisa que já não está lá. No orgulho parvo de quem conta aviões como se fossem vitórias, como se mais um Boeing cheio fosse um poema, um hino, uma medalha, e não mais um prego no caixão de uma ilha que já não cabe em si. Na glória de cada nova abertura de hotel como se fosse inauguração de catedral, no contentamento pueril de políticos que sorriem em frente às câmaras como quem vê pela primeira vez um gelado. Na amnésia generalizada que se vende como estratégia. Na convicção tola de que tudo o que brilha é turismo e tudo o que é turismo é bom. Nos trilhos reduzidos a passadeiras com código QR, nos miradouros congestionados como parques de estacionamento, no silêncio que desapareceu e já ninguém lembra como era. Nas tendas em cima de tudo onde caibam, casas de levar às costas, sendo esse o sector que mais cresceu. Na paisagem repetida em brochuras e destruída na realidade. Na banalidade exportada em massa como se fosse identidade. No betão que avança mascarado de modernidade. Na rendição. No cansaço. E no vazio.
E de repente, como quem acorda de um coma induzido, Albuquerque vem anunciar que o modelo vai mudar, que se cobram taxas, que se melhora a oferta, que se cuida dos trilhos, que se pensa nas pessoas. Como se o problema fosse a falta de moedas e não o esgotamento de uma ilha que já não sabe onde enfiar tanto visitante, tanto ruído, tanta fachada.
Foi ele, não foi outro, o curandeiro de plástico que recitou encantamentos sobre a excelência do turismo madeirense enquanto este crescia como uma erva daninha, sem contenção, sem direcção, sem respeito. Agora diz que quer “qualidade”. Como quem diz que quer paz depois de ter incendiado a aldeia inteira. Como quem diz que ama depois de dez anos de traições. A ilha foi tratada como uma montra de supermercado. Tudo à vista. Tudo disponível. Tudo negociável. E só agora, agora que os trilhos gritam, não com vozes, mas com as cicatrizes abertas no chão, com as raízes expostas como veias cortadas, com o ranger da terra a cada passo de bota importada, só agora, agora que os centros históricos gemem com o peso dos carros, das esplanadas e das placas em inglês penduradas como insultos nos nomes antigos, só agora que os residentes suspiram exaustos, não um cansaço de trabalho, mas um cansaço ontológico, de ver a casa transformar-se em vitrine, de viver como figurante em peça alheia, só agora, dizia eu, é que o senhor aparece, tardo e vaidoso, a anunciar um “upgrade”, palavra que se cola à língua como chiclete mascada por outros, uma palavra que não significa rigorosamente nada mas soa a inovação para quem nunca leu um livro inteiro.
O mar, esse, já começou a devolver o que lhe roubaram. Devolve sacos plásticos, garrafas esquecidas, chinelos sem par, restos de lanches em tupperwares flutuantes, boias de criança com forma de flamingo e, às vezes, devolve-nos a consciência, breve, muito breve, como um enjoo de ressaca. O mar começa a cuspir de volta as promessas ocas, os contratos assinados à pressa, os cartazes de campanha que lhe colaram nas ondas como se as ondas votassem.
E nós, os que ainda ficamos, os que ainda temos os pés enterrados nas pedras e os olhos educados para ver o que não se fotografa, temos de ouvir este senhor dizer que vem aí um novo tempo, como se o velho tempo não tivesse sido dele. Como se não tivesse sido ele a apertar o garrote. Como se tivesse acordado agora de um coma e descoberto, num acesso de lucidez tardia, que a Madeira estava cansada. Mas não está cansada. Está ferida.
E a ferida não se cura com taxas. Cura-se com verdade. E é disso que ele não fala. Porque talvez já não saiba o que é. Talvez nunca tenha sabido. As taxas são a esmola do arrependido. Dois ou três euros para acalmar consciências, como se isso resolvesse o que se perdeu. Como se o turismo de massas se combatesse com moedas e não com ideias. Como se fosse possível transformar betão em paisagem com um folheto bonito e uma entrevista ao domingo. Diz que os residentes ficam isentos, como se isso resolvesse a claustrofobia de viver numa ilha vendida a metro quadrado. Diz que não governa para consensos. Talvez governe para fantasmas. Ou para a sua própria imagem nos espelhos dos hotéis onde pernoita.
E há, em tudo isto, uma espécie de patetismo triste. Uma tentativa de reescrever a história com as mesmas mãos que a escreveram. Albuquerque quer convencer-nos de que sempre quis o que agora diz querer. Que a saturação foi um acidente. Que a voracidade turística foi natural como a chuva. Que ele esteve ausente da decisão. Que passava apenas, como figurante, nos corredores onde se decidiram os cartazes, os slogans, os roteiros. Acredita, talvez, que uma frase dita com convicção apaga o passado. Que uma taxa num miradouro é suficiente para redimir anos de negligência embriagada.
Mas a ilha lembra. Lembra-se de quando era possível andar sem tropeçar em flashes. De quando os trilhos não tinham filas. De quando o mar era mais do que um pano de fundo para selfies. De quando ainda havia silêncio, e as manhãs tinham cheiro e não apenas calendário. E por muito que ele tente vestir esta mudança como inovação, não é mais do que uma fuga, não para a frente, que seria coragem, mas para a ilusão. Um truque. Uma confissão disfarçada de futuro.
E o que sobra, no fim, é este vazio que se acumula como poeira nos quartos fechados. Este cansaço. Esta farsa. Esta terra que se esgota e não sabe. Este homem que anuncia rupturas como quem anuncia o fim da infância quando já se é velho. E nós, espectadores de um teatro pobre, ficamos a ver, como sempre, em silêncio. Porque já nem temos forças para rir.
Julho 2025
Nuno Morna

Muito bem escrito! Abraço
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