Relatório Madeira na UE.


[Crónica de uma Autonomia Subvencionada e das Oportunidades que se Foram Perdendo]

Ouvi, como faço amiúde e com a atenção inteira de quem ainda acredita que o debate político pode ser mais do que um teatro de frases feitas, a discussão parlamentar em torno do relatório "A Região Autónoma da Madeira na União Europeia - 2024". E se o relatório já me deixara com aquele desconforto espesso de quem lê um folheto publicitário redigido por contabilistas entediados, mais me desanimou a incapacidade quase comovente da oposição em desmontar o argumentário ridículo, sim, ridículo, com que o Secretário Regional e a maioria tentaram mascarar o óbvio: que se gastou muito, que se exibiu muito, mas que pouco ou nada se transformou. Foi um desfile de citações europeias descontextualizadas, de números atirados como se fossem milagres, e de uma autocomplacência institucional que merecia ser rasgada com factos, ironia e verdade. Mas não foi. E isso, mais do que irritar, entristece. Porque a mediocridade de quem governa só se eterniza na pasmaceira de quem devia denunciar.

A Madeira, qual doente incurável de verbas europeias, vegeta no interior confortável do seu orçamento assistido, com a cara voltada para Bruxelas como quem espera uma transfusão milagrosa que resolva, por magia, a sua anemia estrutural. E a transfusão lá vem, a conta-gotas, como sempre, celebrada com foguetório institucional, com boletins recheados de tabelas e siglas, e com fotografias de secretários regionais a apertar mãos e a apontar gráficos como se o acto de gastar dinheiro dos outros fosse, por si só, sinónimo de desenvolvimento.

Mas a verdade, essa infeliz senhora que ninguém convida para os jantares da Quinta Vigia, é que a Madeira perdeu o comboio da modernidade com a mesma elegância com que finge tê-lo conduzido. Tudo o que se constrói tem um ar de coisa acabada em 1998, um certo cheiro a financiamento europeu com prazo de validade, como se os edifícios, as estradas, os portos e as escolas servissem mais para constar nos relatórios do que para resolver problemas. Constrói-se um hospital para manter as listas de espera, portos para onde não há barcos, escolas que produzem técnicos de turismo para hotéis que já não chegam para as encomendas. Um teatro de desenvolvimento que funciona à força de palco subsidiado.

E, no meio desse palco, alguém escreve relatórios. Longos, densos, repletos de nomes, de datas, de “C(2022) 6019 final” e de “Regulamento (UE) 2018/920”, essa língua morta dos burocratas, onde se diz, com toda a solenidade do mundo, que a Região está a cumprir. Mas cumprir o quê, exactamente? Cumprir as instruções de quem manda no dinheiro. Não é estratégia: é obediência. Não é visão: é conformismo. Cumprir, no sentido mais literal e medíocre da palavra.

A primeira oportunidade perdida, perdida com zelo e método, foi a da diversificação económica. Toda a gente repete o mantra da inovação como quem recita um salmo laico, mas ninguém acredita, verdadeiramente, que vá acontecer. A economia da Madeira continua dependente do que sempre esteve: turismo de pacote, construção civil e emprego público. E agora também dos fundos comunitários, claro, essa nova indústria que gera empregos para os amigos e relatórios para as gavetas. Os jovens, esses, vão embora. Porque não se fica num lugar onde o futuro é um boletim com som institucional de fundo e siglas em negrito. E quem tenta ficar e criar, afoga-se na papelada, nos prazos, nos pareceres, nas candidaturas com cinquenta páginas e um parágrafo escondido em letra 8 que exige declaração do delegado de saúde e planta topográfica do avô.

A segunda oportunidade, enterrada com flores e faixa de inauguração, foi a da transição ecológica. Porque o clima, para a Região, ainda é uma questão de “se sobrar dinheiro”, e a sustentabilidade é o nome de um cartaz ao lado do separador de resíduos. A água corre suja para o mar, os resíduos acumulam-se como má consciência, o saneamento básico fica-se pelo nome e os portos cheiram a enxofre e diesel. E no entanto, o relatório passa por cima disso com a delicadeza de um funcionário público que não quer arranjar problemas: aponta projectos, menciona programas, cita regulamentos, e passa à frente como se a sujidade no mar da Praia Formosa e os plásticos nas veredas fossem pormenores de uma ilha alheia. Fala-se em metas europeias como quem fala da temperatura de Marte. E o que não se diz, o que nunca se diz, é que a Madeira, essa ilha de beleza infinita e gestão medieval, não cumpre. Nem no ambiente, nem na mobilidade, nem na energia.

E depois há as conferências. As mesas redondas. As missões técnicas. Os gráficos em fundo azul com letras brancas, todos a dizer o mesmo: “convergência”, “resiliência”, “parcerias”, “diálogo multinível”. As palavras vão-se repetindo como música de elevador em hotel de três estrelas: ninguém ouve, ninguém questiona, ninguém acredita. Diz-se “Plano de Recuperação e Resiliência” com a mesma entoação com que se diria “oração pelos defuntos”. Porque toda a gente sabe, e não é preciso mais do que meia dúzia de cafés em Santa Cruz ou em Machico para o perceber, que muito do que se aprova em Lisboa, muito do que se assina em Bruxelas, acaba num boletim de candidatura que ninguém lê, numa obra inacabada, ou num projecto que serve sobretudo para empregar um primo de confiança com cartão de militante.

O problema é que tudo isto se passa sem escândalo. A Madeira tornou-se, há muito, um laboratório da mediocridade sossegada. E, convenhamos, é uma mediocridade bem alimentada. Há verbas. Há programas. Há formulários. Mas falta coragem. Coragem para romper com o ciclo de dependência, coragem para olhar para os problemas sem o filtro do cerimonial, coragem para dizer. com todas as letras, que a Região falhou no essencial: em tornar-se menos dependente e mais livre. Porque é isso que está em causa. A Madeira continua, ao fim de todos estes anos, à espera do milagre da modernidade, mas sem se dar conta de que o milagre, se algum dia vier, não virá de fora.

E há coisas que não custam milhões. Como, por exemplo, tratar os cidadãos como adultos. Explicar-lhes que as listas de espera não se resolvem com mais betão, mas com organização, com gestão profissional, com avaliação de desempenho. Dizer-lhes que os portos não servem para fotografia institucional se não houver navios regulares e tarifas competitivas. Admitir que as empresas não crescem por causa de subsídios, crescem por causa de liberdade económica, de estabilidade regulatória, de meritocracia. E reconhecer, sem rodeios, que os jovens fogem porque não têm para onde ir cá dentro. Não é só por causa dos salários. É porque não há esperança. Porque tudo o que se propõe como alternativa tem o cheiro a bafio de uma burocracia que já nasceu cansada.

E depois há a questão que ninguém quer colocar: e se os fundos europeus, todos eles, sem excepção, tiverem servido, mais do que para modernizar, para adiar? Para tapar o buraco do tempo, para entreter o discurso político, para mascarar a falta de coragem de uma geração inteira de governantes? E se o verdadeiro problema da Madeira não for a falta de verbas, mas o excesso de conformismo?

O relatório, no fundo, é um monumento a esse conformismo. Um compêndio de feitos sem consequência, de iniciativas sem alma, de compromissos sem rasgo. Tudo ali é correcto. Tudo ali é formalmente impecável. Mas nada ali vibra. Nada ali indigna. Nada ali faz sonhar. É como se a Região tivesse desistido de imaginar-se a si própria, tivesse aceite o papel de periférica irrelevante, a viver do que a Europa quiser mandar, como quem espera uma esmola bem redigida.

E, no entanto, ainda há tempo. Ainda há espaço para virar a página. Porque a União Europeia, com todas as suas debilidades e burocracias, ainda oferece instrumentos para quem ousa. Para quem pensa fora da gaveta. Para quem tem a lucidez de perceber que a soberania regional não é apenas uma questão constitucional, é uma atitude. Uma cultura. Um modo de estar no mundo. A Madeira podia ser laboratório de novas soluções ambientais, de novos modelos energéticos insulares, de redes digitais integradas em zonas remotas, de economias circulares, de fiscalidade experimental, de cooperação euro-africana. Podia ser isso tudo. Mas para ser, teria de deixar de fingir que está tudo bem.

E é aqui, no precipício entre o que poderia ter sido e o que foi apenas comunicado, que se impõe o capítulo das recomendações, palavra que, dita assim, parece saída de uma auditoria, mas que no fundo quer apenas dizer: “há saída, se houver vontade”. O problema é esse, sempre foi: a vontade. Não de gastar, que essa nunca faltou. Mas a vontade de fazer diferente. De fazer melhor. De, por uma vez, recusar o ciclo do “cumprimos”, “executámos”, “absorvemos”, como se a excelência política se medisse em percentagens de execução orçamental e não na capacidade de transformar a vida real das pessoas reais.

A primeira recomendação, a mais básica, a mais urgente, é esta: dizer a verdade. Dizer que há metas que não se cumpriram, que há sectores onde se falhou, que há políticas que correram mal. Dizer, por exemplo, que a digitalização da administração pública está atrasada. Que o saneamento básico não acompanha os padrões europeus. Que o PRR corre o risco de se perder em prazos e labirintos administrativos. Que os portos continuam a ser infra-estruturas de fotografia em vez de plataformas logísticas. Que há dinheiro investido sem retorno. Que os indicadores sociais continuam teimosamente abaixo da média. Dizer tudo isto. Não como acto de autoflagelação, mas como ponto de partida para uma nova fase de honestidade política. Porque sem diagnóstico verdadeiro não há cura possível. Só mais maquilhagem.

A segunda recomendação: parar de tratar os fundos europeus como se fossem a única política pública. Há vida para além do quadro comunitário de apoio. Há reformas que não custam milhões: custam coragem. Como simplificar licenciamentos, acabar com a promiscuidade entre política e economia, abrir a Região à concorrência de ideias, de pessoas, de projectos. Como investir no mérito e não na fidelidade partidária. Como despolitizar a administração pública e devolver-lhe a competência técnica. Como criar um ambiente fiscal estável, transparente, competitivo, que atraia empresas pela regra, e não pela excepção. É sim, o CINM com papel central nisto tudo.

Terceira: planear para o futuro. Não o futuro como ideia abstracta, mas como escolha concreta. Quais os sectores estratégicos da Madeira daqui a vinte anos? Que tipo de energia produzirá? Que tipo de empregos oferecerá? Que tipo de população terá? Quer continuar a perder jovens? Quer continuar dependente do turismo? Quer continuar a importar produtos que poderia produzir? Nada disto está respondido no relatório. Porque, verdade seja dita, ninguém pensou nisto a sério. A política regional tem vivido ano a ano, verba a verba, relatório a relatório. Mas o futuro não se constrói com reacção: constrói-se com visão.

Quarta: usar os fundos europeus como trampolim, não como cadeira de rodas. Investir em capital humano, em inovação real, em empresas novas, em talentos escondidos. Não em mais betão, não em centros culturais fantasmas, não em duplicações institucionais. Usar os fundos para transformar, não para manter. Porque manter o que está, o modelo envelhecido, paternalista, protector, é condenar a Região à irrelevância. E uma Região irrelevante, por muito bonita que seja, é uma Região onde ninguém quer viver. Só sobreviver.

E, por fim, a última recomendação: devolver a esperança. Não aquela esperança de cartaz publicitário, com crianças a sorrir e folhas verdes ao vento, mas a esperança concreta de que é possível viver na Madeira com dignidade, com autonomia, com oportunidades. Isso só se fará com uma mudança de atitude, dos políticos, sim, mas também dos cidadãos. Porque enquanto aceitarmos pouco, receberemos pouco. Enquanto aplaudirmos o mínimo, ficaremos com o mínimo. Enquanto confundirmos estabilidade com imobilismo, estaremos condenados a mais do mesmo.

É tempo, pois, de escolher. Entre o relatório que se escreve para agradar a Bruxelas e o relatório que se escreve para servir os madeirenses. Entre a política das inaugurações e a política das soluções. Entre a obediência e a audácia. Entre o conforto do presente e a coragem do futuro.

E se, porventura, a escolha for outra vez o caminho do meio, essa forma polida de continuar tudo na mesma, então talvez a última recomendação seja a mais sincera: aprender, de uma vez por todas, a viver sem disfarces. Com a franqueza brutal de quem olha para dentro e vê não o que queria ver, mas aquilo que verdadeiramente é. Porque, como bem sabemos, só a verdade liberta. E talvez, só talvez, a Madeira precise mais disso do que de qualquer outro fundo europeu.

Julho 2025

Nuno Morna


Comentários

  1. Caro Nuno, excelente trabalho! Innfelizmente, creio que pouca gente irá ler e, ainda menos, compreender...

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