Santo Agostinho: O Escândalo da Liberdade.
[Por que razão o pensador do pecado, da vontade e da Graça continua a ser o mais perigoso filósofo da Igreja, e o mais urgente no tempo em que todos fogem de escolher]
Ele sabia. Sabia que o homem é o animal que escolhe errar. Que escolhe mentir. Que escolhe matar. E sabia que a única dignidade possível está nesse milagre: o de poder, ainda assim, escolher o contrário. Escolher amar. Escolher perdoar. Escolher subir. Deus, no fundo, é o nome que damos à possibilidade de escolher bem. E a liberdade, o lugar onde isso se decide. Ninguém nos força. Ninguém nos salva contra vontade. Nem Deus.
É por isso, exactamente por isso, que Santo Agostinho é o maior de todos. Porque não há consolo na sua filosofia, só verdade. Porque não há paz nos seus livros, só combate. Porque não há certezas no seu pensamento, só fé no meio da escuridão. Uma fé trémula, suada, rasgada, mas fé. E talvez isso baste.
E talvez por isso mesmo, por isso sobretudo, por isso com urgência, seja hoje mais actual do que nunca. Porque vivemos num tempo em que a liberdade foi desfigurada. Reduzida. Diluída. Vendida como produto de supermercado com a etiqueta do tudo-incluído. A liberdade transformada em escolha sem consequência, em impulso validado pelo ecrã, em capricho narcísico embalado por slogans de autenticidade. Como se ser livre fosse fazer o que apetece. Como se o querer fosse automático. Como se a vontade não tivesse peso. Como se a escolha não ferisse. Como se o mal fosse uma construção cultural. Como se o sofrimento fosse sempre culpa dos outros, da sociedade, do sistema, do capital, da História, da mãe. E Agostinho, se nos visse hoje, se lesse as frases nas redes, se ouvisse os debates na televisão, se andasse de metro a ver os olhos das pessoas a fugir umas das outras, não nos insultaria. Nem nos julgaria. Só escreveria. Escreveria com mais fúria. Escreveria com mais piedade. Escreveria com a certeza de que fomos nós, livres, que trocámos o livre arbítrio pela irrelevância moral. A liberdade que ele chorava hoje é tratada como um brinquedo.
Porque não se trata de liberdade, como dizemos, trata-se de desresponsabilização. Porque não há escolha verdadeira onde não há culpa. E o nosso tempo odeia a culpa. Anula-a. Esconde-a atrás de diagnósticos, estatísticas, estruturas. Tudo é trauma. Tudo é causa. Tudo é social. E o indivíduo, esse monstro sagrado de Agostinho, esse ponto de decisão diante de Deus, esse lugar onde o mal pode nascer como um fungo na alma, esse indivíduo hoje não existe. Existe o algoritmo. A tribo. O consumo. A validação do grupo. A gratificação instantânea. A liberdade dissolvida na espuma dos dias.
Agostinho é actual, porque foi o último a levar a sério a vontade. Porque acreditava que a história da humanidade é a história da luta da vontade contra si própria. E é exactamente essa luta que hoje se quer apagar. Com comprimidos. Com entretenimento. Com slogans. Com teorias. Com explicações baratas. Com coaching. Com redes sociais. Com apps de meditação. Tudo serve para não pensar. Tudo serve para não escolher. Tudo serve para não sofrer. Tudo serve para não ser livre.
E por isso, neste mundo que já não quer ser responsável, Agostinho é o escândalo. Porque nos diz que somos. Que somos sempre. Que não há estrutura que nos desculpe. Que não há ferida que nos isente. Que não há sofrimento que anule a escolha. Que até no meio da dor, da guerra, do abuso, da pobreza, do vício, somos livres. E que é essa liberdade, essa possibilidade de dizer sim ou não, de amar ou recusar, de nos erguermos ou ficarmos, que nos torna humanos. Não o cérebro. Não a linguagem. Não a cultura. Mas a vontade.
Por isso Agostinho. Por isso hoje. Porque nada nos assusta mais do que essa verdade. E, porque há ainda quem precise de a ouvir, mesmo que não saiba.
E não é por acaso, não é nunca por acaso, que o mundo moderno, civilizado, tolerante, técnico, com os seus gabinetes cheios de directrizes e manuais de conduta, com as suas campanhas e os seus comités de ética, com as suas políticas públicas e diplomas legislativos, trata a liberdade como se fosse uma substância perigosa, inflamável, que convém manter longe do alcance das crianças. O Estado, esse corpo sem alma que fala connosco como um pai cansado e sem paciência, não acredita na liberdade, por mais que a ponha nos cartazes e nas constituições. Não acredita, porque a liberdade implica erro. Implica fracasso. Implica desigualdade. Implica sofrimento. E tudo isso é inaceitável para um aparelho político que só vive da promessa de controlo. De controlo do presente. Do risco. Do dano. Da escolha. Do futuro.
Porque é isto: a liberdade agostiniana, essa que fere, essa que arde, essa que exige, é incompatível com a paz social administrada. Com a tutela preventiva. Com a engenharia do comportamento. Com a felicidade normalizada por decreto. E o pior é que já ninguém a reclama. Já ninguém a quer. Troca-se por segurança, por conforto, por tranquilidade moral. Pela certeza de que alguém está a tomar conta. De que alguém virá salvar-nos, proteger-nos de nós próprios, explicar-nos que o mal que fizemos afinal não fomos nós, foi o contexto, foi a pressão, foi o sistema, foi a fome, foi o mercado, foi o algoritmo. Agostinho, que sabia o que era perder-se sem ninguém a obrigá-lo, que se ajoelhava no chão da alma a pedir perdão não a César, mas a Deus, seria hoje um corpo estranho. Um herege. Um reaccionário. Um fascista moral.
E é por isso que é necessário. Porque nos lembra que a liberdade começa por dentro. Não nas urnas. Não na lei. Não no boletim de voto nem na Constituição. A liberdade, a verdadeira, aquela que decide entre a luz e as trevas, é a do coração. E se o coração está mudo, se a vontade está entorpecida, se a alma está rendida à desculpa, tudo o resto é folclore. Direitos civis sem pessoas livres são vitrinas de uma loja fechada. Democracias sem indivíduos morais são palcos para actores com o teleponto do poder.
Agostinho escreve contra isso. Contra esse conforto. Contra essa anestesia. Contra essa religião civil que substituiu Deus por um Estado materno e gordo, que dá tudo, proíbe tudo, organiza tudo, planeia tudo, fiscaliza tudo, avalia tudo, previne tudo, e no fim ainda pergunta, com voz doce, se estamos felizes. Como se a felicidade pudesse ser medida por questionário. Como se o bem pudesse ser administrado por directiva. Como se o espírito precisasse de normas de qualidade. Agostinho, que tremia por dentro, que chorava o que escolhera, que suava sangue nos joelhos do pensamento, não caberia numa conferência sobre cidadania activa.
E é aqui que está a actualidade. Porque somos, hoje, aquilo que ele combatia: adoradores do exterior, seguidores da aparência, mendigos de validação pública, escravos de um bem-estar que nos infantiliza. E no meio disso tudo, a liberdade, essa de que falava com as mãos a tremer, tornou-se um adereço retórico. Uma desculpa para o vício. Um eufemismo para a indiferença. Já ninguém diz “errei”, diz-se “fui vítima de circunstâncias adversas”. Já ninguém diz “pequei”, diz-se “fiz uma escolha difícil num contexto desafiante”. Já ninguém diz “sou responsável”, diz-se “sou um produto social”. E Agostinho, se nos lesse, se entrasse num parlamento, se ouvisse os debates, se visse os programas de reabilitação da liberdade, não diria nada. Limitar-se-ia a voltar para casa, escrever, e chorar.
Porque não há liberdade sem cruz. Sem angústia. Sem queda. E não há homem sem essa liberdade. E é por isso, exactamente por isso, que é preciso lê-lo hoje como nunca: para recuperar a dignidade de errar. Para recuperar o peso da escolha. Para recuperar, enfim, a humanidade. Não a humanidade sentimental dos anúncios, mas a humanidade trágica de quem é livre mesmo quando tudo à volta diz que não devia ser.
Agostinho, o africano. O desfeito. O ferido. O homem que sabia que o pecado era um gesto, não uma condição. Que a alma tem corpo. Que a liberdade é uma ferida aberta com o nome de Deus bordado na borda da pele. Agostinho, que não pregava à multidão, mas ao abismo interior. Que não se escondeu no dogma, mas que nele mergulhou como quem procura um espelho que não se parta.
E talvez por isso, por tudo isso, seja um daqueles que nos pode ainda ensinar alguma coisa. Porque não quis mudar o mundo. Quis mudar o homem. E porque foi o primeiro a saber que, se o homem não quiser, ninguém muda nada.
Julho 2025
Nuno Morna

concordo, na essência.
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