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A mostrar mensagens de maio, 2025

O Dia em que o JPP se Demitiu de Santa Cruz.

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[Quando a política trocou a vitória pelo conforto e a lucidez pelo medo] O que se passou na Comissão Política do JPP, entre cafés frios, mãos nos bolsos e as conversas abafadas no corredor antes da decisão, foi um acto que não tem nada de político. É, antes, um episódio clínico. O registo de um enfarte moral, de uma paragem respiratória estratégica. Não se trata aqui de preferências, simpatias ou alinhamentos pessoais. Nem de ter em conta que considero Élia Ascenção, a par de Raul Ribeiro, os dois melhores activos do JPP. Trata-se de um partido a amputar-se a si próprio em silêncio, como um homem que se fere e, por orgulho ou desespero, resolve ele mesmo serrar o braço, sem anestesia, com um chaveiro. O JPP, em Santa Cruz, acaba de cometer um erro que não é apenas táctico. É um erro existencial. Paulo Alves foi escolhido por sete votos. Élia Ascensão ficou com seis. Uma diferença tão frágil que se desfaria com uma brisa mais insistente, com uma hesitação a mais, com um membro da comiss...

Plataforma Liberal Autárquica.

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[Os que ousaram pensar diferente, quando pensar já não servia de nada] Parte I - Onde começa o princípio: ou as cidades que deixaram de ser nossas. Não sei quando começou, talvez no instante exacto em que deixámos de distinguir o cheiro do mar do cheiro do gabinete, as janelas abertas sobre os telhados das cidades antigas e o cheiro do suor dos arquivos, o mesmo cheiro dos corredores compridos com candeeiros de néon onde a esperança vai morrendo aos poucos, uma esperança minúscula, entubada, em coma, cheia de fios e de relatórios que ninguém lê. Talvez tenha começado aí. Ou então quando, ainda com as mãos sujas de entusiasmo, alguém disse a frase proibida: “isto pode mudar”, e o silêncio, esse silêncio quente e sujo das repartições públicas, caiu sobre nós como uma toalha húmida. E foi então que se escreveu o texto. Esse texto. O texto que não devia ter sido escrito. O texto que não cabia nas reuniões da câmara nem nos discursos dos presidentes nem nas palmadinhas nas costas dadas no f...

O árbitro não te salvou.

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[A fábula cómoda da culpa alheia quando a derrota é só nossa] Durante noventa minutos mais os restos do tempo que sobram das lesões fingidas, das quedas como se tivessem levado um tiro, do teatro pobre de homens pagos para correr atrás de uma bola, o futebol transforma-se no que sempre foi: uma telenovela de suor e gritos com moral à mistura, onde todos, o homem de bigode no bar da esquina, o rapaz de calções pendurado no telemóvel, o treinador que berra com o quarto árbitro como se fosse o pai que nunca teve, todos, sem excepção, exigem justiça, justiça imediata, justiça exacta, como se o futebol fosse um tribunal ou um confessionário, e o árbitro o Deus invisível de apito na boca, pronto a separar o bem do mal com cartões coloridos. A primeira falta não assinalada e começa a epopeia. A tragédia. O caos. O coro grego. A nossa Senhora das Causas Perdidas. Perdemos, dizem eles, porque aquele senhor de preto não viu aquilo que todos viram, excepto ele, ou não quis ver, ou viu, mas não ma...

Sem Cultura, Sem Liberdade: Estamos a Desistir de Pensar.

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[Allan Bloom avisou-nos, e nós respondemos com indiferença e ignorância satisfeita] Já não falo de livros há algum tempo, talvez porque o tempo deixou de pedir palavras longas e começou a preferir ruídos curtos, desses que se mastigam com o telemóvel numa mão e a pressa na outra. Mas ultimamente, nestes dias em que tudo parece afundar com um sorriso nos lábios, dei por mim a voltar ao que me formou. Aos livros, sim. E mais concretamente a Allan Bloom, que li há anos como quem ouve um homem velho a resmungar e que agora releio como quem escuta um profeta. Este tempo em que vivemos, feito de opiniões que não nasceram de ideias e de liberdades que não sabem o que são, empurrou-me de novo para a cultura geral, essa coisa desprezada que afinal é o que sobra quando tudo o resto se gasta. Bloom avisou-nos. E nós, como sempre, fizemos de conta que ele era apenas mais um pessimista. Mas talvez fosse apenas alguém que nos conhecia melhor do que nós próprios. A cultura geral nunca foi, para quem ...

A Escola só precisa de pensar.

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in DN Madeira de hoje, 26.05.2025 A Escola só precisa de pensar.  [O delírio tecnológico do Governo  mata o que resta de inteligência nas salas de aula] O Sr. Secretário de Educação anunciou um  projecto-piloto  para experiência de utilização de Inteligência Artificial (IA) por parte de alunos e professores, já no próximo ano. Disse-o com aquele ar iluminado de quem descobriu a  electricidade , com a voz a roçar o entusiasmo dos que confundem novidade com avanço, progresso com ruído, como se meter inteligência artificial na sala de aula fosse o mesmo que meter inteligência nos cérebros ou juízo nos currículos. Há alunos que choram porque não sabem escrever uma carta, alunos de olhos vazios diante de um texto de Eça, alunos que confundem Camões com um  influencer de fitness. Não é a IA que lhes falta. É humanidade. É chão. É miolo. É a sujidade luminosa de quem pensa por si, mesmo que pense mal. A escola não precisa de Inteligência Artificial. Precisa de qua...

"Quem não tem dente do siso não tem juízo",

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Aos sessenta e quatro anos nasce-me um dente do siso. Um dente. Do siso. Como quem entra atrasado no velório, tropeçando no tapete, pedindo desculpa aos gritos, e vem sentar-se ao meu lado com o descaramento dos que nunca foram convidados, mas aparecem sempre nas fotografias. Sessenta e quatro anos. Já não tenho paciência para surpresas. Muito menos para surpresas dentárias. Sinto-o lá atrás, no fundo do fundo da boca, como um pensamento que me envergonha, como uma recordação que não pedi, como a carta do banco a lembrar-me uma dívida. A gengiva lateja-me como o coração dos que se apaixonam, mas isto não é amor, é calcário biológico a forçar caminho por entre nervos gastos, tecidos já cansados de ser corpo. Um dente. A fazer-me companhia. Como se me faltasse mais qualquer coisa. Como se eu fosse inacabado. Como se a minha boca fosse um país em obras. Este dente não nasceu. Apareceu. Como as notícias más. Como os velhos conhecidos que me reconhecem na rua e chamam-me por um nome que já ...

O Meme que ofendeu os moralistas de cartão.

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[Ou as minhas aventuras no Ministério Público] Este assunto tem-me irritado. Na semana passada fui chamado ao Ministério Público para prestar declarações e estive lá, sentado numa sala pequenina, encavalitado numa secretária, onde as paredes tinham o tom do tédio das repartições públicas, por causa de um meme que partilhei no Facebook, um meme, sim, essas pequenas porcarias digitais com que hoje se comunica a indignação, o sarcasmo, a vergonha alheia, o escárnio, o vómito que a política provoca. A senhora que me interpelou de modo educado e com uma enorme paciência, e a neutralidade treinada no rosto, perguntou-me se tinha consciência do que fizera, e eu não disse que não, porque tenho, tive, terei. Partilhei porque me apeteceu, partilhei porque me indigna que se indigne quem devassa, porque me exaspera esta moral de bordel onde tudo depende de quem faz e não do que se faz, partilhei porque era verdade, e isso parece ser o verdadeiro problema. O meme, para os que não sabem ou fingem nã...

Filipe Sousa vai ser comido com cebolada.

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[na casa onde os inocentes não duram uma semana] Entrou, o senhor Filipe, na Assembleia da República com aquele passo curto de quem ainda não sabe se está a sonhar ou se perdeu o autocarro para Santa Cruz. Com os papéis mal dobrados no bolso interior do casaco, a gravata um pouco torta como se a tivesse posto no escuro, a expressão entre o espanto e o enjoo de quem acabou de sair do avião e ainda tem os ouvidos entupidos. Não trazia programa, nem bússola, nem sequer uma ideia clara do que estava ali a fazer, apenas aquele ar cansado de quem julga que basta chegar para mudar, que a política se faz com vontade e que a vontade, quando é pura, derrete as estruturas como o sol derrete a neve dos folhetos turísticos. Não derrete. Nunca derreteu. E muito menos derrete ali, naquele edifício feio e velho onde os gritos cheiram a mofo e os silêncios a conivência. O senhor Filipe, que em Santa Cruz ainda manda como quem distribui bênçãos de sacristia, pensa que chega a Lisboa e o respeitam por is...

O cadáver adiado que se recusa a sair de cena.

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[ou já nem sei se vale a pena continuar a bater no ceguinho] Perdeu. O homem perdeu. O rosto vago, embaciado, uma coisa que só os partidos sabem nomear. Perdeu como se perde quando não se tem mais nada a dizer que se ouça, perdeu como quem esvaziou o conteúdo e ficou só com o recipiente. Mas não saiu. Ficou. Continua ali. A colar-se à cadeira com cuspo e papel de embrulho, a encostar o queixo ao microfone, a repetir que sim, que aceita, que compreende, que é tudo uma questão de princípios. E a gente a ver, coitados, cansados por mais um ataque de vergonha alheia. Eu ouvi-o. Ouvi-o na televisão com aquele tom de padre cansado de funerais de pobres, a dizer que “aceitamos com humildade o voto dos madeirenses”, como se o voto fosse uma bofetada bem dada e ele, resignado, se deixasse bater em nome da democracia. E eu ali, na sala a olhar para o ecrã, a pensar: quem é este homem que fala como se ainda tivesse qualquer coisa para liderar? Quem é este homem que olha para o abismo e vê uma tem...